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Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil

No último dia 05 de novembro (de 2023), das 13h30min às 19h, ocorreu a primeira etapa do ENEM, que se desdobra em dois finais de semana, para enfrentamento de 180 questões e redação. O tema da redação foi este que usei em epígrafe, como título do presente artigo. Como qualquer outro assunto, a condição da […]

Por Israel Minikovsky 14 min de leitura

No último dia 05 de novembro (de 2023), das 13h30min às 19h, ocorreu a primeira etapa do ENEM, que se desdobra em dois finais de semana, para enfrentamento de 180 questões e redação. O tema da redação foi este que usei em epígrafe, como título do presente artigo. Como qualquer outro assunto, a condição da mulher no contexto do trabalho deve principiar pela análise de alguns aspectos históricos. Em épocas passadas, a mulher ficava confinada ao ambiente residencial, ocupando-se integralmente das prendas domésticas, zelando pelo interesse do marido e da prole. É com a Revolução Industrial que a mulher passa por um processo de habilitação social. A máquina a vapor, que substitui a força braçal, coloca homem e mulher em relativa igualdade, já que o trabalho humano fica adstrito a alimentar ou fiscalizar uma máquina, tornando-se apêndice dela, invertendo a relação. Os Textos Sagrados das respectivas tradições religiosas costumam colocar a mulher na posição de coadjuvante em relação ao homem. Embora tenha havido indiscutível progresso no mercado de trabalho, que passou a acolher o recurso humano feminino, ainda se verificam disparidades. Desde o trato que se concede na ocasião de reportar-se à funcionária, até o reconhecimento que se reflete no ganho salarial. Perdura uma forte tendência de relegar às mulheres os trabalhos de cuidado. Esse cuidado se volta ao ambiente físico, em termos de higienização e manutenção, mas também a pessoas. Crianças, idosos e enfermos que necessitam de supervisão constante, em regra, ficam aos auspícios de uma figura feminina. No geral, sobretudo quando o alvo do trabalho de cuidado guarda parentesco ou afinidade com a pessoa da cuidadora, esta atividade não recebe contrapartida pecuniária. Isto importa reconhecer que muitas mulheres, senão a maioria, veem-se na situação de doadoras do seu próprio tempo de vida, sem a menor compensação. Nos Estados Unidos, por exemplo, são raras as famílias que contratam funcionários de índole doméstica. A legislação é severa, sobrepondo aos potenciais contratantes pesados encargos trabalhistas. Nisto, que fique bem claro, existe um dirigismo econômico e jurídico. Em que pese ser o trabalho doméstico necessário e importante, continua sendo um trabalho que não produz riqueza, é economicamente improdutivo. Por tal razão, se desestimula a oferta desse tipo de prestação de serviço, para que a pessoa procure integrar-se a uma atividade economicamente produtiva, que gere riqueza ao país e arrecadação ao Estado. A natureza da questão, como se pode ver, é complexa. Envolve uma dimensão econômica e outra existencial. Oportuna é a discussão sobre a invisibilidade da realização desse tipo de tarefa, pois o hábito e a repetição fazem com que naturalizemos aquilo que não é puramente natural, mas cultural, algo construído e, por que não dizer, imposto às mulheres. Precisamos desenvolver um olhar atento para o trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil, considerando que, ministrar cuidado a quem dele necessita, é tão primordial quanto empenhar-se em atividades econômicas de alto retorno. O mundo e o Brasil, aliás, muito mais este do que aquele, caminham a passos largos para uma sociedade envelhecida. Por conseguinte, o de que se trata, é bem mais do que simplesmente de um tema para uma redação, é da realidade dura e fria, que impõe uma revisão do modo como estamos habituados a enxergar o mundo, a vida e a pessoa do outro. O mesmo planeta que se deixou dominar pela tecnologia digital, se curva à patência do mundo empírico, que sinaliza a persistência de demandas eminentemente analógicas. Marx punha em evidência o trabalho do operariado e do campesinato no século XIX. No presente momento, a classe social a ser resgatada da invisibilidade é a das mulheres cuidadoras, justamente as trabalhadoras que não produzem mais-valia, ainda que a valia social do seu ofício seja inestimável. O mundo continua precisando de intelectuais – e de mudanças. Luz!