A arquitetura do patrimonialismo – parte I: O MP mais caro do Brasil
Walter Marcos Knaesel Birkner Sociólogo Notícia divulgada pelo Estadão, em 15.01.2024, informa que o Ministério Público – MP – de Santa Catarina tem os salários mais altos do País. Veja-se em: https://www.estadao.com.br/politica/veja-quanto-ganham-os-procuradores-do-ministerio-publico-estadual-mais-bem-pago-do-pais/ Isso nos convida a uma análise sobre duas questões. Primeiramente, nos obriga a olhar para o nosso problema brasileiro original: o patrimonialismo desde […]
Por O Brasil como nos parece 27 min de leitura
Walter Marcos Knaesel Birkner
Sociólogo
Notícia divulgada pelo Estadão, em 15.01.2024, informa que o Ministério Público – MP – de Santa Catarina tem os salários mais altos do País. Veja-se em: https://www.estadao.com.br/politica/veja-quanto-ganham-os-procuradores-do-ministerio-publico-estadual-mais-bem-pago-do-pais/
Isso nos convida a uma análise sobre duas questões. Primeiramente, nos obriga a olhar para o nosso problema brasileiro original: o patrimonialismo desde a nossa fundação – tema central desta primeira parte do artigo. Em segundo lugar, nos remete a uma discussão entre a Sociologia e a Ciência Política: o debate entre o peso da cultura e o peso das instituições legais – tema central da parte II deste artigo. Se culturalmente Santa Catarina difere da média nacional, institucionalmente se assemelha.
A matéria menciona o exemplo de um procurador com a média salarial mais alta do MP mais bem pago do País: mais de R$ 130 mil por mês, em 2023. A média dos agentes da justiça no MP catarinense foi de R$ 99 mil mensais. Só em remunerações, a entidade catarinense custou quase R$ 600 milhões no ano passado. Se todos os integrantes ganhassem nada menos, porem nada mais que o teto de R$ 41.600,00, o gasto seria de R$ 250 mi. Sobrariam R$ 350 mi por ano. Agora, pensa o Brasil inteiro.
Com base em cálculos do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT, se essa sobra fosse anualmente pra BR 470, em cinco anos a duplicação estaria passando por Rio do Sul, potenciando o Alto Vale e evitando milhares de acidentes e mortes na rodovia. Dá pra entender o tamanho da imoralidade do patrimonialismo brasileiro? O (pro)fundo moral disso não é que o patrimonialismo seja simplesmente indecente. É que essa indecência concentra renda, preserva desigualdade e mata pessoas.
A lei diz que ninguém pode ganhar mais que o teto, mas o teto virou piso. São os penduricalhos, que não contam como salário. É tipo auxílio-moradia, alimentação e saúde (afinal, quem não precisa disso?); têm gratificações (quem não merece um presentinho?). Também tem o abono permanência (quando o promotor só tira 30 dias de férias ao invés dos 60 que têm direito: ética do trabalho, a gente entende). E também tem a licença compensatória, que é concedida aos procuradores que acumulam funções.
Sabe: é como o Ronaldinho Gaucho, que era ponta de lança, mas também meia armador, beque avançado, ponta direita, esquerda e centro avante. Ele ganhava muito porque acumulava funções em campo. Só que o danado não aumentava a carga horária, só a renda. Mas, é coisa de super-homem ou de semideuses, como alguns preferem. Então: não é salário; é “indenização”, maneira de legalizar o patrimonialismo que, como sabemos, significa a apropriação do patrimônio público como se privado fosse. É assim: constitucional, na cara dura. Bom, mas aí já é o contrário do Ronaldinho.
A arquitetura patrimonialista funciona assim: Começa no Superior Tribunal Federal -STF, que se auto-concede uma prebenda, por uma justificativa do tipo “verba indenizatória” (sic) – tem autonomia constitucional e orçamento próprio, nem passa pelo Congresso. Por ser “indenização” (sic), tá fora do teto. Aí, juízes de outro tribunal vão ao Conselho Nacional de Justiça, reivindicam a paridade, o CNJ autoriza e concede o direito aos tribunais estaduais, feita a festa. Já ouviu falar em “efeito cascata”? É isso.
Agora, pra não embrulhar mais o estômago, não perguntarei se pagam imposto de renda sobre “indenizações”. Também não vou comparar com promotores da Alemanha ou do Japão ou com salários de outros profissionais. Mas têm duas coisas: 1) precisamos entender que nosso maior problema brasileiro não é simplesmente a corrupção. É o patrimonialismo, dentro do qual a corrupção é um subproduto do estímulo causado pela fraqueza humana e pelo exemplo dos cretinos da elite que institucionalizam a tunga.
A fraqueza humana está em toda a parte, mas pode ser reprimida 1) pelo freio moral da Sociedade e 2) pelo freio das instituições legais. E, bem no meio desses dois freios estão os responsáveis que tecem as leis. Geram e gerem as instituições que dão o exemplo que a Sociedade tende a seguir, seja por concordância moral ou coerção. Se entre eles, os cretinos e pusilânimes em conluio instituírem leis que criam privilégios corporativos demasiado imorais, outros cretinos e pusilânimes também quererão, legal ou ilegalmente. É quando o efeito cascata aumenta o número dos agregados até transbordar pra corrupção.
É a velha história de que o bom exemplo vem de cima. E, nas democracias, onde o complexo valor moral da igualdade serve de parâmetro, se alguém de cima se vê no direito de compensações “indenizatórias”, os de baixo logo encontrarão uma justificativa pra se acharem no mesmo direito, legal ou ilegalmente. Daí em diante, o sistema patrimonialista ganha amplitude. Todo mundo quer um pouco e, por pressão das camadas inferiores, os de cima concedem novos privilégios corporativos, pra se sentirem menos culpados.
Por fim, o cenário do patrimonialismo é o da “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Como nem sempre se consegue legalmente, arruma-se outro jeito. Isso é patrimonialismo porque a fonte é o patrimônio público, constituído pela Sociedade trabalhadora e empreendedora, que sustenta os de cima e os debaixo. Ao se apropriarem, os de cima distribuem migalhas aos debaixo e o patrimônio público se funde no privado. E, quanto mais exposto fica esse amálgama, mais gente quer se fundir a ele.
Por conta dessa arquitetura sem data de vencimento, perdemos nossa capacidade de investimento público, que já foi de 10% na década de setenta e ano passado não chegou a 2% do PIB.
Então, quando um alto servidor da justiça esboçar cansaço pelo excesso de demandas judiciais, saibas que ele está sendo “indenizado”. Se ele se limitasse a receber o teto constitucional, que dá uns R$ 540 paus por ano, abriria mais uma vaga pra alguém tão talentoso quanto ele. Além de se cansar menos dividindo o serviço, diminuiria a desigualdade social e estimularia o desenvolvimento regional, aumentando a demanda nos supermercados e nas enotecas.
No mais, quando assistimos os acidentes e as mortes nas rodovias e o baixo crescimento econômico desse País gigante, é bom saber que as causas correspondentes não estão meramente na imprudência dos motoristas ou na baixa produtividade do trabalhador brasileiro (cuja carga horária é das mais altas do Mundo e o salário, dos mais baixos). As causas estão no nosso problema original, o patrimonialismo, que nada mais é do que a tunga legalizada que concentra renda, estimula a corrupção e anula os investimentos.
Na essência, portanto, não se trata de um problema de cultura, ou, por assim dizer, de moral corrompida e endêmica. Trata-se das instituições formais, as leis e regras amparadas na Constituição, feitas ardilosamente para favorecer o andar de cima. E nesse andar superior, onde vivem os privilegiados, Santa Catarina pouco difere da vergonha nacional – assunto da segunda parte deste artigo, em próxima publicação.