Uma questão de deontologia médica
Uma mulher norte-americana, seja ela, Victoria Hill, após ter realizado um teste de DNA para fins de tratamento de saúde, veio a descobrir que, em verdade, é filha de médico de fertilidade, aqui, por uma questão de justiça e transparência, nominalmente citado, o Sr. Dr. Burton Caldwell. Burton, em vez de usar o sêmen de […]
Por Israel Minikovsky 16 min de leitura
Uma mulher norte-americana, seja ela, Victoria Hill, após ter realizado um teste de DNA para fins de tratamento de saúde, veio a descobrir que, em verdade, é filha de médico de fertilidade, aqui, por uma questão de justiça e transparência, nominalmente citado, o Sr. Dr. Burton Caldwell. Burton, em vez de usar o sêmen de doadores, usou o seu próprio. Para além da surpresa, descobriu que a família (biológica) é grande: ela tem pelo menos 22 (vinte e dois) irmãos. É o que acusa o banco de dados do Estado de Connecticut. Circunstância consectária à sua radical desinformação, ela se deparou com a desagradável ocorrência de ter namorado um de seus próprios irmãos. Lá em 1997, no meu primeiro ano da faculdade de filosofia, eu já me preocupava que viesse a se concretizar esse tipo de ocasião na sonhada república de Platão, que defendia entregar os infantes aos cuidados do Estado, por imputar descrédito à família, como instituição. Biologicamente, Burton foi totalmente “previsível”. Pois não é que, segundo se ensina, todo organismo, por instinto de sobrevivência das espécies, visa reproduzir a si próprio? Contudo, diferente do ambiente selvático, os seres pensantes que somos, carecem observar a ética. Os filhos que derivam dessa fraude, não sem razão, padecem de trauma de identidade. É normal nos preocuparmos com nossas origens. Juridicamente, o que se recomenda, é acionar o genitor, para que ele seja civilmente responsabilizado. Com efeito, o que se sobressai nessa história é a absoluta falta de responsabilidade do autor dos fatos. Colocar filhos no mundo não é uma brincadeira. A ética médica abarca múltiplas situações e acompanha o fazer profissional em todos os seus menores detalhes. Dessa vez, o preceito foi gravemente vergastado. Esses filhos, por sua vez, terão também eles, prole. E o episódio abarcará grande número de pessoas, protraindo-se no tempo, intergeracionalmente. A falta de amparo financeiro dado aos filhos ainda vem acompanhada de ausência de vínculos afetivos, existenciais, maculada pela subtração do que realmente importa, o sentido de referência. Não basta aos pais dar vida a seus filhos, senão lhes pesa o ônus de atribuir razão de ser à própria vida. Como médico, Burton tirou vantagem da vulnerabilidade de suas pacientes, submetendo a grave violação de direito pessoas de quem tinha o dever de ser guardião e protetor. Outro agravante é a irreversibilidade do que se fez. Trata-se de uma situação indesfazível. Esse contexto de delitos nos induz a uma série de reflexões. O que percebo, nos Estados Unidos da América e no Brasil, é que a escola, não raro, é eficiente em capacitar o aluno a auferir uma cadeira no curso universitário desejado, mas peca por não fazê-lo um cidadão ético. Sou contrário a qualquer tentativa de estratificação ocupacional, haja vista que todo trabalho é digno. Entretanto, alguns fazeres profissionais não são “apenas” profissão, mas, como se diz, “vocação”. E medicina é uma destas atividades, com ares de sacerdócio. Evidentemente, cada indivíduo é dotado de livre-arbítrio. Não há um diploma capaz de outorgar moralidade infalível. Sempre, a cada minuto, temos de escolher entre o certo e o errado. Admito, nossas escolhas são condicionadas. Escolhemos a partir de certas condições. Entre elas está a nossa própria história pessoal. Essas pessoas que vieram ao mundo agora são instigadas a se posicionar: colocar-se na postura de vítima ou protagonista. Essas 22 pessoas vão dizer, o que importa mais: o que fizeram comigo, ou o que eu vou fazer com o que fizeram comigo. Nada é mais difícil do que ser maior do que si mesmo. É uma mistura de coragem e complacência para consigo mesmo, é a capacidade de acatar o que é revoltante por definição. Para um, o que há é um beco sem saída, em que só resta o suicídio, para outro, é a grande oportunidade de surpreender àqueles pseudomisericordiosos, pródigos em distribuir comentários do tipo “coitado”, “pobre”, “infeliz”, etc. O legislador deveria obrigar a realização de testes de DNA em recém-nascidos para coibir fatos dessa natureza. Aliás, no caso citado e consolidado, entendo que o Estado é corresponsável por omissão. Tivesse havido fiscalização evitar-se-ia o embaraço. A quem é cidadão comum, fica a indicação de inteirar-se do histórico das clínicas que realizam procedimentos dessa natureza. Luz!