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Militância Feminista Mundial

Ao fim do Manifesto do Partido Comunista de 1848, Marx e Engels concitam os trabalhadores ao engajamento político da seguinte forma: “Proletários de todos os países, uni-vos!”. A ordem do dia, agora, é outra: “Mulheres de todos os países, uni-vos!”. Em África, mais precisamente na Gâmbia, está em curso um projeto de lei que descriminaliza […]

Por Israel Minikovsky 16 min de leitura

Ao fim do Manifesto do Partido Comunista de 1848, Marx e Engels concitam os trabalhadores ao engajamento político da seguinte forma: “Proletários de todos os países, uni-vos!”. A ordem do dia, agora, é outra: “Mulheres de todos os países, uni-vos!”. Em África, mais precisamente na Gâmbia, está em curso um projeto de lei que descriminaliza a ablação, entendida como o extirpamento do clitóris. É certo que o mundo jurídico não deve recepcionar nenhum tipo de mutilação, muito menos um, cuja modalidade visa a diminuir satisfação sexual e acarreta profundos danos psicológicos à mutilada. O parlamento da Gâmbia, hoje, é majoritariamente masculino, e uma rápida contagem dos que se opõem à medida, antecipa a aprovação da nefasta iniciativa legal. Uns “gatos pingados” defendem a manutenção da proibição. A condescendência com a prática da ablação é agravada pelo fato de o procedimento ser irreversível. Trata-se de um costume que antecede o Islã, mas os imames, em sua maioria, apoiam o feitio da excisão em nome de argumentos morais. Quem já leu o Alcorão sabe que ele não ordena nada parecido, salvo que, como em outras denominações, também o islamismo, ao lado das Escrituras Sagradas, observa os mandamentos advindos da tradição. Max Weber define o Estado como aquele ente que detém o monopólio do uso legítimo da violência. Entretanto, quando um Estado torna lícito um costume obsoleto e agressivo, quando comparado com o direito mundial, perdura a tal legitimidade? Eu penso que sobra apenas a exclusividade da detenção do poder, e não mais a legitimidade. Toda forma de poder inicia como poder sobre os corpos. Muito embora toda essa discussão acene para um primitivismo civilizacional, pontuo que a malfadada praxe, de algum jeito, percute na mente dos maiores ícones da cultura ocidental. René Descartes chegou a um pensamento que pensa a si mesmo. O pensar cartesiano está acima da matéria e pode prescindir de corpo. Nesse viés, observamos muito claramente que há a afirmação radical e absoluta do masculino, ligado à ideia de racionalidade, e a negação do feminino, mais ligado à emoção, ao corpo. Ainda que o “cogito ergo sum” seja uma intuição, e a intuição seja associada à feminilidade, ela só tem espaço efêmero, aqui e agora, sempre antecedida da dúvida metódica; esta, sempre lógica, abstrata, silogística. A negação do corpo não corresponde, portanto, a “somente” negar a mulher, mas à negação de tudo o que é feminino. Sim, o feminino é mais amplo do que o estritamente mulheril. Porque eu posso ter um animal fêmeo, um objeto fêmeo, e mesmo o homem mais viril carrega em si mesmo algo de feminino. A integridade física e corporal dos seres humanos compõe aquilo que o direito classifica de dignidade humana. O Estado tem o dever ético de resguardar o bem-estar dos seus administrados, e não fazer o exato oposto, como se avizinha na Gâmbia. Se o que se busca é coibir a promiscuidade, o mais indicado é fomentar uma cultura de estudo e trabalho. A ablação, dentre outros motivos, não merece receber amparo jurídico por comprometer a felicidade individual e coletiva das pessoas, razão de existir do Estado, consoante Aristóteles. No entanto, esse mesmo gênio grego que meditou sobre o que convém à pólis, definiu mulher como “o macho falho”. Para ele, a mulher seria uma espécie de defeito da natureza. É por essa razão que hoje, no Ocidente, filósofos e filósofas (que há pouco tempo passaram a ser consideradas como tais), pesquisadores e pesquisadoras de outras áreas das ciências humanas e sociais, têm capitaneado um discurso mais abrangente, onde cabem sujeitos, outrora alijados das altas discussões acadêmicas. A ocorrência da desconsideração predominou ao longo de dois milênios e meio. Pelo visto, este sério e relativamente novel debate ainda não aportou ao solo gambiano. E esta é a razão suficiente para que ONGs e governos estrangeiros interfiram no processo legislativo da aludida república africana, em nome da sororidade, um tipo de sentimento cuja dimensão não pode ficar um milímetro aquém do universal. Dentro do garantismo jurídico, a ordem de prioridade deveria colocar no alto da pauta o zelo pela integridade física e psicológica dos seres humanos, a evitação da tortura, da mutilação, da crueldade, da opressão, de toda forma de sofrimento. Assegurados esses mínimos jurídicos, pode-se começar a ser realizada uma ingerência de autorresponsabilização.