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ELEIÇÕES MUNICIPAIS V – É preciso descentralizar a política e devolvê-la ao uso comum

Coluna

Por O Brasil como nos parece 58 min de leitura

Para muitos a política é uma chatice. Os partidos não passam de siglas controladas por hábeis oportunistas que buscam beneficiar a si mesmos, ou aos grupos que os apoiam em relação aos recursos e bens públicos. Os políticos mentem diuturnamente. São corruptos, desonestos. Para outros a política atrapalha a economia. Os políticos deveriam ser técnicos. Peritos em administração e economia. O modelo ideal de político deveria ser o administrador de empresas, o empresário. Toda decisão política deveria ser exclusivamente técnica. A administração pública deveria ser eficaz.  A obrigatoriedade do voto é uma forma de repressão branda imposta pelo Estado. Se votar é uma obrigação, então ao menos é possível tirar proveito vendendo o voto. Todas estas expressões de descrédito, de desesperança em relação à política e aos políticos faz sentido em sociedades individualizadas nas quais estamos inseridos na atualidade.

Nas sociedades individualizadas os indivíduos são estimulados diuturnamente à competitividade. Trata-se de ser reconhecido como um indivíduo bem sucedido, que se expressa em sua capacidade de consumo, de usufruir de viagens, de férias em lugares paradisíacos, entre tantas outras situações desta ordem.  O segredo do sucesso é tornar-se “empresário de si mesmo”. Investir produtivamente o próprio tempo. “Time is Money”.  Tornar-se o melhor. Competir. Ser o mais ágil alpinista de cargos e salários custe o custar.  Quanto aos fracassados estes precisam rever suas estratégias. É imperativo que desenvolvam a vontade de vencer na vida. Precisam desenvolver o hábito de pensarem positivo, de desejarem o sucesso.

Talvez o que mais caracteriza as sociedades individualizadas é o abandono da dimensão política e social compartilhada com os demais indivíduos. Ou dito de outra forma, laços sociais, compartilhamento do espaço público, demonstração de empatia pela situação do outro não se apresentam como demandas vitais aos indivíduos.  Neste cenário, os indivíduos não dispõem de tempo para os assuntos públicos, da ordem da política, da coletividade.  Quando são instigados a se posicionar sobre questões públicas tendem a expressar sua impaciência, irritabilidade. Demandam por salvadores da pátria, por visões empresariais, econométricas e até autoritárias sobre as questões da política.  Sob tais perspectivas, estamos diante de um cenário de despolitização individual e social profundo.

Por decorrência, ou intercorrência, a perda de consciência da importância da participação política em relação às demandas sociais na forma da despolitização se apresenta na prática dos poderes e das instituições constitutivas do Estado e, mais concretamente no plano municipal, lócus onde o poder político se apresenta no cotidiano dos indivíduos.  Assim, no cotidiano o indivíduo não consegue compreender qual a função do vereador. Este (na grande maioria dos casos) não o representa efetivamente, não dialoga com a comunidade, não promove debate público em torno das questões públicas. A percepção que se tem das casas legislativas é que representam apenas seus próprios interesses e de grupos afiliados. Talvez esta seja uma das razões que motivam os indivíduos a se manifestarem pelo fechamento das câmaras dos vereadores, ou mesmo pelo fim dos salários atribuídos ao exercício aos referidos mandatários. 

Quanto ao poder executivo, o que se assiste – e se trata de fato de assistir na medida em que não se apresentam experiências de descentralização e participação popular nas administrações públicas municipais -, o que se constata são governos de emergência e de espetacularização da política. Em sua maioria, os governos municipais agem pontualmente diante de situações problemáticas em determinados setores, ou fazem ajustes de serviços públicos deficitários prestados à população, ou ainda, diante de catástrofes climáticas. É aqui que a espetacularização da política se manifesta de forma grotesca, senão brutal.  O primeiro ato do mandatário local é constituir um “gabinete de crise” (que, aliás, poderia ser permanente diante do esvaziamento público e comunitário da política); ato contínuo: vestir colete da defesa civil e conceder entrevista apresentando-se como conhecedor profundo da situação desviando atenção popular das inconsistências e contradições de sua (di)gestão.

A espetacularização dos desastres ambientais, de catástrofes climáticas, entre outros eventos adversos desta natureza, tem um objetivo político e econômico que a exige e justifica: evitar o debate público, social e, comunitário em torno das causas de tais fenômenos.  Trata-se de preencher a agenda pública com medidas paliativas, com a profusão de discursos políticos de salvação local, ou de publicização de pareceres de especialistas evitando colocar em debate as estratégias financeiras de grupos econômicos, de investidores, do setor imobiliário, na apropriação e gentrificação do espaço urbano e municipal. Trata-se de evitar a percepção dos munícipes dos processos de exclusão, de expulsão de parte da população trabalhadora precarizada, subempregada e, mesmo desempregada para áreas de encostas de moro, beira de riachos, para áreas de risco.  Ainda nesta direção, a espetacularização ao impedir o debate público sobre as causas dos eventos catastróficos sugere aos indivíduos que a culpa é das pessoas atingidas, desalojadas. Aos indivíduos fracassados no competitivo contexto da sociedade da plena produção e do consumo restaram-lhes colocar a vida em risco em áreas inapropriadas à habitação.

Neste contexto emergencial e espetacularizado, constituem-se governos que priorizam obras que promovam a visibilidade de suas ações frente à “opinião pública”. A opinião pública que se apresenta como expressão de posicionamentos dos indivíduos diante de suas demandas e preferências insuflados pelas pressões advindas da competividade a que os mesmos estão submetidos.  De forma geral, o que se constata são governos desprovidos de iniciativas na formulação de políticas públicas, de programas governamentais, que potencializem o envolvimento dos munícipes no debate, na ação e defesa do espaço público, dos bens públicos municipais. Acrescente-se a esta despolitização da administração pública, o fato de que prefeitos procuram se vincular a agenda política de lideranças estaduais e nacionais da extrema direita, reverberando pauta de valores, promovendo a violência discursiva, mas também simbólica, em relação a ideias, profissionais, grupos sociais, organizações e entidades que se contraponham a agendas políticas emergenciais e espetacularizadas.  Não é incomum que mandatários municipais se prontifiquem a promover a violência por meio de uma linguagem político-discursiva promotora da mentira que corrói o espaço público e cuja finalidade é capturar a atenção de indivíduos propensos a referendar estas formas de posicionamento e atuação.

O esvaziamento da política no plano municipal por meio de sua espetacularização também se manifesta entre os indivíduos habitantes da sociedade individualizada. Submetidos a precarização das relações de trabalho; ao constante discurso da competitividade, da produtividade; carentes de lideranças messiânicas que os orientem diante das inseguranças econômicas e sociais; enganados pela constante produção, reprodução e disseminação da mentira em relação à importância societária da política; integralmente ou parcialmente fracassados como “empresários de si mesmos”; ou mesmo alheios, alienados e desinteressados em relação à necessidade do debate público, a massa dos indivíduos apática e indiferente ao debate político é ativada, motivada e insuflada pelo niilismo, pelo vazio da espetacularização da política.  A despolitização é o modo de ser das sociedades individualizadas, expressa em suas instituições, em seus poderes públicos, no Estado securitário e policialesco, bem como nos indivíduos elevados a cidadãos pelo código de direito do consumidor. Diante do esvaziamento da política, de sua emergência espetacularizada o filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben assim se posiciona: “A política contemporânea é esse experimentum linguae devastador, que desarticula e esvazia em todo o planeta tradições e crenças, ideologias e religiões, identidades e comunidades” (2015, p. 82)[i].

Diante deste cenário devastador, a oportunidade que temos pela frente nestas eleições municipais é paralisar a máquina política que institui governos de emergência e espetacularizados no contexto de um Estado policial e securitário empenhado na proteção dos interesses do capital e devolver a política ao uso comum.  Ou seja, trata-se de promover uma política pautada na verdade, no respeito à linguagem constitutiva do diálogo, do debate, da negociação pública e social em torno de promoção do espaço público, na preservação e acesso dos bens públicos necessários a vida humana, a vida em sociedade pautada na justiça social. Ou dito de outro modo, o mundo é resultado do compartilhamento humano. A preservação do mundo para as atuais e futuras gerações depende da disposição dos seres humanos no espaço local, municipal onde o poder se manifesta em sua proximidade vital em garantir este compartilhamento comum, comunitário do mundo. Esta é a condição da política. Arte do diálogo, da negociação no compartilhamento do mundo.

Reitere-se que as eleições municipais representam uma significativa oportunidade, mas não a única, muito menos a mais importante para o entendimento de que a política amparada na verdade e, como arte do debate, da negociação em torno de interesses da comunidade se contrapõe a falaciosa concepção da política como administração tecnocrática e gerencial do Estado policial e securitário a serviço do capital, de interesses de grupos econômicos que sequestram o espaço público, os bens comuns e despolitizam a política. Portanto, trata-se de acompanhar, ler, analisar, comparar os programas de governo (se é que de fato apresentarão programas de governo aos eleitores) dos partidos e candidatos.  O tempo dispendido para compreender as propostas dos candidatos e suas principais ideias é fundamental para o alcance de discernimento do voto e suas consequências públicas e sociais.

Porém, o período eleitoral é a apenas uma oportunidade e, repita-se: não a mais importante.  Importante e urgente é se envolver comunitariamente (pós-eleições) com experiências e ações que podem devolver a política ao uso comum, ao uso da comunidade. Entre estas experiências (já vivenciadas em diversos períodos e, diferentes comunidades e povos) encontra-se a articulação de associações de moradores que se organizam para: a) acompanhar a representatividade dos vereadores; b) sugerir a formulação e implementação de programas e políticas públicas de governo; c) avaliar a qualidade dos serviços públicos, saúde, educação, infraestrutura; c) exigir e afirmar que a gestão pública assuma uma caráter popular e democrático levando a público, bem como criando espaços de participação e debate em torno da questões estratégicas para o desenvolvimento do município de forma inclusiva e amparada em princípios de solidariedade e justiça social.

A constituição de uma gestão pública democrática e popular não é tarefa que se constituía apenas com a declaração de boas intenções de governantes e governados. Implica em relações de poder, em disputas com grupos econômicos que se beneficiam privadamente com o sequestro do poder público. Muitas vezes, os próprios mandatários municipais (Prefeitos e vereadores) apoiados por grupos econômicos privados resistem a compartilhar a gestão do município com a comunidade. Foram eleitos para garantir o sequestro do Estado, do poder público, do espaço e dos bens públicos.  Ainda nesta direção, uma das experiências exitosas de devolver a política ao uso comum, ao uso comunitário foi a experiência ocorrida em alguns municípios brasileiros e, também em outros países na década de 1990 do século XX e, na primeira década de 2000 do século XXI denominado de “orçamento participativo”. Nestas experiências a comunidade teve a oportunidade de debater e sugerir a composição do orçamento municipal, a partir de suas necessidades e urgências. Inúmeras outras experiências desta natureza ocorreram e ocorrem pontualmente em administrações municipais. É urgente resgatá-las e conhecê-las como possíveis estratégias de uso comum da política.

Mesmo considerando os limites temporais e de concepção destas experiências (submetidas a soluções de continuidade pelos grupos interessados no sequestro do que é público) elas são o exemplo de que é preciso descentralizar a política, devolvê-la ao uso da comunidade. A concentração das decisões políticas nas mãos dos governantes, dos burocratas da administração é a garantia de sequestro e despolitização da política por parte de segmentos privados da sociedade.  A descentralização da política implica em devolver a política ao uso comunitário (comum), compartilhado a partir de uma concepção democrático-popular de gestão pública.  A descentralização da política requer a participação popular pensando, debatendo e, sobretudo se envolvendo na construção de políticas públicas de educação, de saúde, de trabalho, de distribuição de renda, de juventude, de ocupação adequada do espaço geográfico municipal, entre outras, amparadas (repita-se) na justiça social.

Somente descentralizando e devolvendo a política ao uso da comunidade é que poderemos superar a mentira e a constituição e discursos que agridem e promovem o sequestro da política, do poder público, do espaço público, dos bens públicos. Na descentralização democrática da política os vereadores são fundamentais, pois poderão contribuir como disseminadores, mediadores do amplo debate comunitário em torno das questões públicas.  É exercitando a descentralização democrática que o legislativo (vereadores) poderá dar um novo sentido a sua desgastada condição e representante dos interesses da comunidade.  A descentralização democrática e popular do debate e da ação política no município é condição intransferível para a constituição de estratégias de desenvolvimento amparada na ressignificação da política como ação comum/comunitária com equidade e justiça social

O desprezo à descentralização democrática, popular e comunitária da gestão pública local, municipal nos manterá presos ao esvaziamento da política, à reprodução da mentira que destrói a capacidade de diálogo e de articulação política e, sobretudo às piores práticas de políticos oportunistas de ultradireita e suas práticas pós-fascistas orientadas por e para a defesa de interesses de grupos econômicos interessados no sequestro do espaço público e dos bens públicos. Desnecessário demonstrar as tragédias humanas e ambientais derivadas do sequestro da política. O cavalo caramelo que o diga… se é que não tenha sido cooptado, ou proibido de dizer o que viu e o que ouviu, ou mesmo, sobre o que refletiu(?) durante as longas horas em que ficou sobre o telhado a espera de ajuda vinda dos céus, ou d’água…


[i] AGAMBEN, Giorgio. MEIOS SEM FIM: Notas sobre a política. Tradução Davi Pessoa. Revisão da tradução Claudio Oliveira. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015.  

 Sandro Luiz Bazzanella

Professor de Filosofia