Abriu-se a porta do abismo
Em A Divina Comédia, de Dante de Alighieri, está inscrito no vestíbulo que conduz ao inferno: “Vós que entrais, abandonai toda a esperança”. No dia 19 de junho de 2024 a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) deu parecer favorável ao Projeto de Lei 2.234/2022, que autoriza e regula o funcionamento de bingos, cassinos, jogo […]
Por Israel Minikovsky 16 min de leitura
Em A Divina Comédia, de Dante de Alighieri, está inscrito no vestíbulo que conduz ao inferno: “Vós que entrais, abandonai toda a esperança”. No dia 19 de junho de 2024 a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) deu parecer favorável ao Projeto de Lei 2.234/2022, que autoriza e regula o funcionamento de bingos, cassinos, jogo do bicho e outros jogos de azar. O argumento a favor da proposta promete ofertar segurança jurídica ao que hoje não recebe amparo legal, além de gerar emprego. Esta é a exposição de motivos. Pontuo que, assim que o jogo do bicho for legalizado, a demanda diminuirá, pois incidirão impostos sobre a velha prática. Ou seja, o jogo perde a atratividade. Então é provável que jogos de azar, cuja prática é paralela ao jogo legalizado, perdurem em nome da expectativa de maior retorno financeiro, sem deduções. Cumpre recordar que o acessório sempre segue o principal. Com o jogo, vêm o tráfico de armas e drogas, prostituição, e outras mazelas mais. O CID-10, no item Z 72, deixa claro que a ludopatia é um transtorno mental e de comportamento. A autorização de funcionamento destas “casas” promoverá falências pessoais em massa. Na terra do bordão“Deus, pátria e família”, famílias inteiras serão destruídas pela jogatina. É realmente curioso, nunca ouvi falar de alguém que tenha ficado rico com tais jogos, mas me colocaram a par de “n” casos em que a pessoa perdeu tudo. O movimento é este: o sujeito vai ao cassino, obtém algum êxito, e na sequência começa a perder. Mas crente de que a perda é temporária, e que nas próximas jogadas ele pode se recompor e virar o jogo, vai de cabeça no abismo, nas novas tentativas. E dívidas são dívidas. Com a legalização, abre-se a possibilidade de cobrar dívida de jogo na Justiça. Entretanto, ao menos nesta seara, a “lei do trinta” não fala mais alto? A legalização do jogo é um desestímulo ao trabalho. É, ainda, um meio fácil de perder o que foi obtido através do esforço difícil. Há um descompasso entre o trintídio suado, por meio do qual se obtém o salário que mal cobre as necessidades subsistenciais, e a jogada célere em que se consome importâncias muito maiores do que o pagamento de um assalariado. Ao lado da maconha, que passará a ser tolerada, a jogatina chega com a força total de uma nova droga. Fiodor Dostoievsky, em O Jogador, apresenta o seu próprio descaminho existencial, ao escrever a saga de um homem viciado em jogos e que tinha de fugir dos seus credores. O Código Civil de 1916 incluía o pródigo entre os “loucos de todo gênero”. De fato, quem dilapida o próprio patrimônio, sugere não estar no gozo pleno de suas faculdades mentais. A parábola do filho perdido, na Bíblia, também retrata um caso de dissipação de bens por um filho que recebe a herança por antecipação. Admitindo que alguém possa levar a melhor na casa de jogos, fica o conselho e a sabedoria do meu falecido avô, Pedro Kulpa, “o que vem fácil, vai fácil”. A propósito, falando de pessoas com mais idade, o bingo é uma das atividades prediletas dos grupos de terceira idade. Então fica o questionamento: não haveria atividade melhor do que esta, para preencher o tempo, compatível com uma proposta construtiva, voltada para a qualidade de vida de quem se encontra numa fase existencial sui generis? Nas escolas privadas isto já é uma realidade, e deveria ser extensível às escolas públicas: conteúdos ou disciplinas referentes à educação financeira. O mesmo Estado que autoriza casas de jogos, antes disso, deveria ofertar uma sólida formação em educação financeira aos seus cidadãos. Não me parece razoável apostar na maioridade civil, presumindo que todo ser humano maior de 18 anos seja preparado para todas as artimanhas que integram o mundo. O PL de que estamos falando partiu da direita. A mesma ala ideológica que defende o armamentismo, o desmatamento, o genocídio, e um Estado com poucos servidores. Porém, haverá necessidade de contratar pessoal para fiscalizar esses estabelecimentos. Essas “empresas” – uso esse termo na acepção formal, isto é, haverá um CNPJ – serão um esquema perfeito para lavagem de dinheiro. E esse aspecto, quiçá, não vem a ser acidental, mas o próprio âmago da iniciativa legal. Enquanto alguns legalizam o dinheiro oriundo da economia do crime, os trabalhadores da economia formal, que passarão a ser frequentadores desses espaços, no fundo do poço do seu estiramento financeiro, se depararão com a inscrição alighieriana, “vós que entrais, abandonai toda a esperança”.