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A Ocorrência de Nova Fátima

é escabroso e desnorteante

Por Israel Minikovsky 17 min de leitura

Em 13 de outubro de 2024, no Município de Nova Fátima, no norte do Estado do Paraná, um menino de nove anos invadiu um hospital veterinário e matou vinte e três animais, que ali estavam internados. O menino vive com a avó e, até onde se sabe, não teria diagnóstico de transtornos mentais. Os animais foram arremessados contra a parede, e alguns tiveram partes do corpo mutiladas. O menino, cujas imagens ficaram registradas no circuito de câmeras, confessou o que fizera, mas não demonstrou arrependimento. O proprietário do local e médico veterinário, Lúcio Barreto, relatou que ficou emocionalmente impactado, pois há anos cuida de animais e jamais testemunhou nada parecido. Ele ainda pontuou que é escabroso e desnorteante se deparar com um contexto como esse, protagonizado por uma criança, um dia após o dia das crianças. Pois bem, quem não desenvolveu suas habilidades e competências comunicativas, acha-se privado de expressar o que quer, o que precisa, o que sente, através da articulação da linguagem. O que a criança pretende dizer com palavras e seu processo de verbalização não alcança, ela o faz por meio de comportamentos. Um dos fundadores da Índia moderna, Mohandas Gandhi, emancipou seu país, do domínio britânico, quebrando teares. O ludismo indiano faz parte de um plano maior, calcado no pacifismo. Gandhi repudiava a violência e, por isso mesmo, orientava seus compatriotas a dirigir seu ódio a coisas, às máquinas, nunca investindo contra a vida de seres humanos. Ora, veja-se que, matar mais de duas dezenas de vidas animais é, no plano ontológico, mais grave do que depredar coisas inanimadas. O que o menino gostaria de fazer, com a figura humana, que protagoniza a função de opressor na sua existência, e ele não pode fazer, pela razão de compreender qual é seu exato lugar na correlação de forças, ele o fez com os animais, estes, tão vulneráveis quanto ele, o algoz. Todo ser humano carrega consigo uma determinada quantia de agressividade. Contudo, se a pessoa tem uma vida conturbada, se o sujeito passa por circunstâncias altamente estressantes, ou a todo momento assiste à violação dos próprios direitos, essa agressividade aumenta, a ponto de, em alguns casos, ultrapassar a linha do administrável. A demonstração de ausência de arrependimento mostra, no mínimo, duas coisas. Primeiramente, que o autor da ocorrência, em que pese ter meros nove anos, já está profundamente dessensibilizado. A dor alheia não dói nele. Essa é a manifestação de uma verdade interna, a de que as pessoas do seu entorno são indiferentes ou apáticas ao que ele transmite emocionalmente. O infante não consegue estabelecer sintonia emocional com seus ladeantes, porque ele próprio ficou relegado à desconexão. Em segundo plano, fica patenteada a falta do senso de moralidade e justiça. A autocrítica e a autorreprovação não encontram lugar no intelecto do agente. A ausência do juízo de reprovabilidade, seja para com as condutas erradas de terceiros ou de si próprio, são a prova cabal do histórico de negligência de que foi vítima o agente. Essa criança precisa de acompanhamento: psicológico, psiquiátrico, pedagógico, socioassistencial, ela oferece risco a si mesma e aos outros. Por que o menino encontra-se sob os cuidados avoengos? Quem são seus pais? Por que não têm o infante junto de si? Conselho Tutelar, Ministério Público e Judiciário deverão cooperar para que a judicialização dessa situação logre a superação do status vigente. Não foi divulgado o nome do menino, mas por uma via ou por outra, a comunidade local toma conhecimento da identidade do agente. É preciso superar o sentimento de ódio e frustração, ainda que você, amável leitor, seja um militante da causa animal, e concentrar as forças na prestação de cuidados. A desproteção das animálias afere o nível de desproteção do ofensor. O ordenamento jurídico é um sistema, e só funciona sistemicamente: em última instância, a Lei de Proteção aos Animais foi vergastada em razão do inadimplemento do Estatuto da Criança e do Adolescente. Isso significa que o menino deverá, sim, ser responsabilizado, mas porém, o Estado deverá preconizar as garantias constitucional e legalmente afiançadas aos seres humanos em desenvolvimento, em caráter de prioridade absoluta, a fim de respaldar e legitimar suas expectativas jurídicas e políticas, firmando uma correspondência entre direitos e deveres, na relação cidadão-Estado. A ocorrência em apreço é o retrato fiel do modo como nós, sociedade, vimos tratando o agente, e é, indubitavelmente, um pedido de socorro. Que fique bem entendido.