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Pela barbárie se alcança a civilização?

O que não queremos como resultado também não presta como fator operacional

Por Cleverson Israel 18 min de leitura

Os historiadores, e outros intelectuais progressistas, até hoje, comemoram os louros da vitória da Revolução Francesa e da Revolução Russa. Mas bem se insinua que, tanto no caso de uma revolução, como no da outra, foi vertido mais sangue do que ao longo de mil anos nas garras da inquisitorial autoridade eclesiástica, preocupada em banir bruxas e outras figuras associadas ao poder de satanás. Em alguma palestra de que participei foi dito que “não se combate o mal, reforça-se o bem”. E muitos autores nos advertiram de que “não devemos nos tornar monstros ao travar batalhas contra eles”. Notícia de 13 de fevereiro de 2025 informa que o Congresso Nacional de El Salvador aprovou lei que autoriza o envio de pessoas em condição de menoridade civil para prisões de adultos. Recupero a informação de que o presidente salvadorenho Nayib Bukele instaurou um regime de exceção, que principiou em março de 2022, e se estende até o presente momento. A justificativa para a gestão despótica repousa sobre a suposta guerra contra as gangues e contra a criminalidade. Os menores apreendidos ficariam em alas ou pavilhões separados, dentro das unidades prisionais. Eles teriam o perfil comum de pertencerem a gangues. Alcançados os 18 anos de idade, passariam a integrar o regime geral dos adultos. De cara, vemos uma afronta à Convenção Americana dos Direitos das Crianças de 1989. Outro retrocesso jurídico e civilizacional é o viés menorista. A política pública de segurança de Bukele afina com o antigo Código de Menores, que entrou em vigência no Brasil em 1979. Nesse diploma legal, a criança e o adolescente são vistos como pequenos delinquentes, que devem ser disciplinados e punidos, e não como seres humanos em formação que carecem de promoção de sua dignidade. Forçar infantes e adolescentes à convivência com adultos, assinalados por desajustes sociais e de personalidade, acarreta contaminá-los com esses desvios. As próprias infrações administrativas, cometidas por crianças e adolescentes, acusam para a fragilidade ou inexistência de vínculos positivos, acusam para um modelo fracassado de convivência, anulando a possibilidade de qualquer aprendizagem significativa. Como trabalhador do SUAS, conheço bem o trabalho desenvolvido pela equipe do Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas. De maneira especial nessa fase da vida, persecução penal não resolve nada, o que resolve é acolhida, afeto, respeito, diálogo. Enfim, alteridade, e não autoridade. Se o tráfico recruta com facilidade o adolescente e o jovem, creio que essa dinâmica espelha, em alguma medida, duas situações: a falta de outras oportunidades ao tráfico, sobretudo no tocante ao desempenho de atividades profissionais, e a incapacidade da rede pública de ensino de cativar a atenção do estudante aos conteúdos ministrados nas redes escolar e universitária. O jovem foi para o tráfico porque lhe faltou uma política pública, organizada o bastante, que o contemplasse. E, agora, esse mesmo Estado que foi omisso e negligente, erra não por deixar de fazer o que lhe competiria, mas por implementar uma política errada, na forma, no conteúdo e no método. Segurança é uma política pública que se faz com a sociedade, e não ao revés dela. Combater a impunidade é um valor do direito penal. Entretanto, acima do Código Penal sempre está a Constituição, um documento estabelecente dos mais elevados ideais jurídicos e civilizacionais de um Estado-nação. A ideia de jus puniendi precisa ser antecedida pela ideia de garantismo. O Estado, que não afiança garantias jurídicas mínimas aos seus administrados, não tem legitimidade para punir. A criança e o adolescente são credores de prioridade absoluta. A tarefa mais importante de uma geração é preparar a geração seguinte. Não basta ao Estado fazer a intervenção. A intervenção deve ser qualificada. Quem quiser estrangular o futuro de um país, faça o que Bukele está fazendo: matar os horizontes das mais novas gerações. Pessoas devem ser tratadas como pessoas: elas têm história, endereço, origem, identidade, acham-se circundadas por um contexto concreto e simbólico. Se a premissa é de que o indivíduo reflete uma conjuntura social, o governante deve estruturar um projeto de sociedade, um plano de governança, que consiga influir, transformar ou reverter totalmente os processos indesejados. Simplesmente punir ou recluir é pouco, muito pouco. Dificilmente um regime de governo unilateral e impositivo, no sentido ascendente-descendente, consegue alcançar o escopo para o qual se propõe, e mesmo que o consiga fazer, o efeito desejado não se mantém à prova do tempo. Sem democracia e sem socialismo, ainda que na sua versão mais suave, tipo marca d’água, nada se constrói de sólido e perene. O exato oposto do socialismo é a mortandade de crianças. Quando o maior socialista do planeta nasceu, Herodes tratou de mandar matar todos os meninos de zero a dois anos.