A arte da escutatória
Clodoaldo recém havia sido inscrito no seu órgão de classe, e dava o máximo de si no pioneiro consultório terápico. Desde a adolescência sonhava em ser psicólogo, e agora se debatia com questões desta natureza: aluguel, condomínio, luz, água, internet, telefone, anuidade, limpeza, alvarás, licenças, impostos, e um sem número de outros compromissos financeiros. Passou […]
Por Israel Minikovsky 15 min de leitura
Clodoaldo recém havia sido inscrito no seu órgão de classe, e dava o máximo de si no pioneiro consultório terápico. Desde a adolescência sonhava em ser psicólogo, e agora se debatia com questões desta natureza: aluguel, condomínio, luz, água, internet, telefone, anuidade, limpeza, alvarás, licenças, impostos, e um sem número de outros compromissos financeiros. Passou a assinar uma coluna num periódico local, – para atrair clientela – mas também isto lhe era cobrado. Eis que os dias passaram rapidamente, e agosto chegou sem pedir licença, o mês do psicólogo. Numa bela manhã, do aludido mês, ainda estava a abrir a porta de seu consultório, e uma cliente espevitada arremessou-se porta adentro, antes que ele mesmo pudesse fazê-lo. Clodoaldo queria molhar a língua com um copo de água, mas adiou o refrigério para atender aquela, cuja demanda urgia. A jovem senhora esparramou-se pelo divã, sem apresentações prévias, sem perguntar pelo preço da consulta, e desatou a falar de que era perseguida no seu local de trabalho, que dava tudo de si, e, por isso mesmo, era invejada e padecia retaliações da chefia. Uma colega mais velha era o seu socorro, haja vista que esta se punha como mediadora entre os dois polos em conflito. Clodoaldo imediatamente lincou a situação ao triângulo dramático de Karpman. A cliente relatou estar passando trabalho com o filho, aluno do ensino fundamental I, pois os professores do garoto a chamaram na coordenação pedagógica, cobrando maior rigor na supervisão das atividades escolares do pré-adolescente, dado que expunha traços inconfundíveis de TDAH – transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. Com os olhos estatelados, a cliente expunha a situação de sua irmã, dois anos mais velha do que ela, que se encontrava em sofrimento mental extremo, vítima de uma depressão que se iniciara depois do puerpério que seguiu ao nascimento do primeiro filho. Ela sofria muito com a situação, dado que as irmãs eram superamigas desde a infância. Sem entrar em maiores detalhes sobre o estado clínico da irmã depressiva, pôs a par que sua sogra era bipolar, de modo que se fazia necessário abordar a referida com muito cuidado, tentando identificar a espécie de humor que a inquinava naquele dia. Sua cunhada, irmã mais jovem do seu marido, era estudante do último ano do ensino médio, e sofria bullying por gostar de meninas. Clodoaldo virava as páginas do CID-10, tentando encaixar as várias situações na tipificação internacional correspondente. Baseado nas várias teorias da personalidade que estudara, escrevia quase que estenograficamente no seu bloco de papel, tentando não deixar nenhum aspecto de fora. Rolando muitas lágrimas, a mulher deplorava ser apaixonada pelo marido ao mesmo tempo em que ele se mostrava ciumento e possessivo, dado a bebedeiras. Em certo momento, começou a falar da figura paterna, que falecera há algum tempo. Atento, Clodoaldo percebia a repetição de traços de personalidade no pai e no marido, consoante a fala da pessoa que ali estava. As constelações familiares emergiam caracterizadas, paradigmaticamente. A jovem senhora se mostrava ansiosa e apreensiva quanto aos possíveis resultados das várias dimensões de sua existência, ao passo que lamentava coisas do passado que não mais poderiam ser mudadas. Já o momento presente a pressionava, era uma fonte de acentuado estresse. Ela reconhecia que os transtornos pelos quais passava, às vezes, somatizava, manifestando fisicamente as dores da alma. De repente, toca o celular. A mulher atende. Era a secretária do seu ginecologista recordando que, dentro em breve, chegaria o horário da consulta. Clodoaldo ficou ainda mais curioso com a situação, conjecturando por qual razão a sua cliente estava precisando de um profissional especialista nesta área da medicina. Assim que a cliente desligou o celular, tendo-se passado mais de cinquenta minutos de conversa, Clodoaldo solicitou a palavra, com o objetivo de dar uma devolutiva à sua nova cliente. Não obstante, a senhorinha desculpou-se, disse que estava atrasada, sem tempo para digressões, uma vez que o relógio é imperdoável. Com o mesmo atropelo que ingressara no consultório, dele saíra. Curso de oratória para quê? Do que precisamos, hoje, é de um curso de escutatória!