A começar pelo próprio exemplo
O deputado federal Reimont Otoni (PT-RJ) apresentou projeto de lei propondo uma reserva de vagas para pessoas em situação de rua em concursos, processos seletivos e contratações efetuadas pela administração pública federal, na ordem de 10% sobre o total disponível. Essa nova cota teria o propósito de incluir mais essa parcela da população, alijada e […]
Por Israel Minikovsky 16 min de leitura
O deputado federal Reimont Otoni (PT-RJ) apresentou projeto de lei propondo uma reserva de vagas para pessoas em situação de rua em concursos, processos seletivos e contratações efetuadas pela administração pública federal, na ordem de 10% sobre o total disponível. Essa nova cota teria o propósito de incluir mais essa parcela da população, alijada e marginalizada, privada da integração à sociedade. Reputo louvável a iniciativa. Se alguma crítica me ocorre, e que eu inclua entre aquelas dignas de consideração, é esta: o comprometimento da qualidade do trabalho realizado pelo servidor. Na administração pública devem trabalhar os mais capazes e capacitados. As leis de cotas flexibilizam este sagrado postulado. Entretanto, a administração federal, uma vez aprovada a iniciativa legal, estaria mostrando à sociedade brasileira que pratica o que prega: acolhe em seu funcionalismo aqueles segmentos que, mediante lei, constrange a iniciativa privada a acomodar entre os quadros dos seus recursos humanos. Talvez alguém se pergunte sobre como uma pessoa momentaneamente tão achacada pelas circunstâncias pode estar contribuindo com a administração pública. Ou, antes disso, como ela pode preparar-se para o certame. Pontuo que é muito circunstancial ser um empresário bem-sucedido ou estar perambulando pelas ruas. Em cidades de menor população, em que há poucas pessoas em situação de rua e elas são conhecidas pelo nome, é comum que, por exemplo, todas elas sejam cronicamente drogaditas. Logo, não têm perfil para trabalhar na administração pública. Mas em cidades maiores, às vezes, a família toda está em situação de rua, e mesmo pessoas com formação no ensino superior padecem da falta de moradia. É assim que, alguém que até ontem estava na rua, pode receber aprovação em concurso e trabalhar como assistente social na EMHAB. Historicamente, no Brasil, sempre foi um grande desafio ter casa própria. De todos os graves problemas sociais, o estar em situação de rua, é um dos mais visíveis. Não é meramente uma questão de estética urbana, mas algo que esporeia a nossa consciência, pois, olhar para esta condição e ficar inerte, parece nos acusar de indiferença e indolência. Do mesmo modo que é mais fácil extrair a lepidoptereidade, isto é, a essência de borboleta de borboletas reais, e difícil fazer o caminho inverso, ou seja, extrair borboletas reais da lepidoptereidade, assim se passa com a situação de rua, é fácil decair nesta condição, dificílimo sair dela. Tomando em conta esta infeliz concretude de vida, é que o legislador vem acudir a sina das pessoas que sofrem esse processo de desintegração de vínculos. Hegel explica que, na sociedade asiática da antiguidade, só o imperador era livre; entre os gregos antigos havia uma aristocracia livre; e na sociedade alemã moderna havia a democracia, onde todos os cidadãos eram livres. No entanto, mais que simplesmente ser livre, importa uma vida digna. Pouco aproveita uma vida livre, de estômago vazio, ao relento. Liberdade, sim! Mas não apenas ela! Um homem desfalcado de patrimônio e renda é escravo da privação e da miséria. Se a nossa Constituição, como dizem os tais anarcocapitalistas, é um dicionário de sonhos, recuperemos a noção de que as grandes realizações são precedidas de grandes sonhos. E a pioneira legislação aqui compulsada é prova de que o Primeiro Setor pode ser o protagonista dos ideais jurídicos de uma nação. Começamos a fazer alguma coisa e, lá pelas tantas, percebemos que somos capazes não só de fazer alguma coisa, mas muita coisa, quem sabe, quase tudo, senão tudo. Disse Jesus: “As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8, 20). César dê às pessoas onde reclinar a cabeça, porque o mais importante, o descanso da alma, este já se encontra pago mediante oferta alçada pelo Sacerdote Perfeito. Ser feliz compete ao indivíduo, mas o Estado pode minorar a quantidade de sofrimento e colaborar com a consecução deste objetivo. Incluir cidadãos em situação de rua nos quadros de recursos humanos da administração pública resolve duas demandas: o trabalho que precisa ser feito é executado pelo seu exercente, e, de quebra, subtrai-se das ruas um sujeito, quando não, uma família inteira. Engenharia social e jurídica é luz!