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A instrumentalidade da lei

Temos, no Brasil, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que fornece orientações sobre como as leis devem ser interpretadas em situações de aporia, paradoxo ou concurso de dispositivos reciprocamente excludentes. Desconheço, no entanto, diploma legal que defina para que a lei deve ser posta em circulação. Talvez o silêncio do legislador reflita […]

Por Israel Minikovsky 16 min de leitura

Temos, no Brasil, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que fornece orientações sobre como as leis devem ser interpretadas em situações de aporia, paradoxo ou concurso de dispositivos reciprocamente excludentes. Desconheço, no entanto, diploma legal que defina para que a lei deve ser posta em circulação. Talvez o silêncio do legislador reflita o consenso tácito de que a lei serve para promover a justiça, a paz e a harmonia sociais e a ordem pública. Principio com esta reflexão porque na maior Câmara de Vereadores do Brasil, em São Paulo, tramita projeto legislativo da autoria do camarista Rubinho Nunes, do União, burocratizando o voluntariado voltado à alimentação das pessoas em situação de rua. Para que as pessoas físicas ou entidades possam ofertar alimentação a quem mora ao relento, deverá comprovar uma série de formalidades, de difícil e trabalhoso adimplemento, do contrário, ficando sujeitas a aplicação de multa cujo valor ronda os estratosféricos R$ 17 mil. A importância da cominação contrasta com a fragilidade econômica das entidades que praticam esta boa ação. Estima-se que 52 mil pessoas se achem em situação de rua na capital paulista. A parlamentar Luna Zarattini, do Partido dos Trabalhadores, está se articulando para barrar a aprovação da iniciativa legal. Segundo o proponente do projeto, a medida visa organizar o trabalho das ONGs e ofertar segurança alimentar aos beneficiados. De acordo com Karl Marx, o exército industrial de reserva, o contingente dos desempregados, cumpre o importante papel de forçar para baixo o valor do salário mínimo, pois quem está no mercado de trabalho não quer decair para a condição de quem engrossa as fileiras dos miseráveis. É significativo que uma legisladora alinhada com a ideologia da classe trabalhadora se ocupe em frear a tramitação deste mau plano legislativo, ela tem a consciência da conexão sistêmica entre exploração na economia formal e os completamente alijados do circuito produtivo. Nunca se debateu tanto sobre o impacto ecológico da atividade produtiva antrópica sobre o meio ambiente. E nem poderia ser diferente, estamos assistindo a cenários estranhos e incipientes, que vão desde fenômenos climáticos extremos à mudança da coloração das águas oceânicas. Hoje temos ciência de que a causa mais importante que redunda na extinção de uma espécie é a destruição de seu habitat. É o comprometimento da cadeia alimentar que decreta a desaparição de uma espécie do globo. Ora, ao que nos parece, este conhecimento está sendo usado contra os seres humanos em situação de rua: pretende-se erradicar esses indivíduos da paisagem urbana, do mesmo modo como se combatem pragas, como formigas, cupins, baratas, etc. Ocorre que, precisamente neste ponto, deparamo-nos com uma barreira moral: esses, a quem alguns de nós pretendem erradicar dos espaços de uso público, são, acreditem!, tão humanos quanto eu e você, quanto aqueles que estão nos espaços de poder, de decisão, de produção legiferante. E essa importante circunstância merece e deve ser considerada. As ONGs executam um múnus público. Elas são eficientes naquilo em que o Estado é falho. Se a ideologia liberal leciona que o Estado deve não atrapalhar o cidadão, deve permitir o protagonismo da iniciativa privada, isto se aplica não apenas à atividade propriamente econômica, senão ainda ao trabalho de filantropia, assistência e promoção social. E agora vemos o Estado que, além de omisso, vem criar entraves a um trabalho tão relevante e tão belo. É uma afronta ao próprio cristianismo, religião predominante no seio da sociedade brasileira. Mesmo as pequenas cidades estão se deparando com essa expressão da questão social, a população em situação de rua. E, na real, não há solução definitiva ou mesmo temporária. É algo que não se faz desaparecer. É algo que precisa ser administrado da melhor forma. Muitas situações de vida podem fazer com que um indivíduo decaia nesse extremo, de ter que se entregar à indigência. Todavia, o fato é que um número considerável de pessoas, junta-se a estes desgarrados, por perder o controle da própria vida para as drogas. Por conseguinte, a política de assistência social deve ser pensada conjuntamente com a política de saúde. O Estado ser omisso, já caracteriza forte reprovação da coletividade, mas, além de ser omisso, promover dificultação para quem está bem-intencionado, é simplesmente um absurdo!