Acima do Tribunal?
Recentemente, foi noticiado que, em plena sessão do júri, no Estado de Pernambuco, o filho da vítima aproximou-se do réu e desferiu vários tiros em desfavor do seu desafeto. Certa vez, quando ainda era estudante de direito, assisti aos debates de um júri na Comarca de Rio Negrinho, e me lembro do idoso causídico nos […]
Por Israel Minikovsky 16 min de leitura
Recentemente, foi noticiado que, em plena sessão do júri, no Estado de Pernambuco, o filho da vítima aproximou-se do réu e desferiu vários tiros em desfavor do seu desafeto. Certa vez, quando ainda era estudante de direito, assisti aos debates de um júri na Comarca de Rio Negrinho, e me lembro do idoso causídico nos informar de que já havia enfrentado mais de mil sessões solenes, como aquela em que articulava sua defesa em prol da sua cliente. Para ser bem sincero, minha experiência como advogado, nesta área, é bem mais escassa, discursei na tribuna apenas dez vezes. De todo modo, foi o que bastou para eu ter uma visão melhor do que aquela que acompanha as pessoas leigas. Os crimes dolosos contra a vida são de competência do Conselho de Sentença, e não do juiz singular togado, justamente porque a vida é o bem maior de nosso ordenamento jurídico, e o Estado, por isso mesmo, devolve ao povo o poder judicante, ele que é o verdadeiro titular da faculdade potestativa, na condição de intérprete social do direito. Ceifada uma vida, ou perpetrada uma tentativa neste sentido, vem a ser a própria comunidade a apreciadora de todos os méritos, sejam eles da acusação ou da defesa. A definição do injusto e do justo, do errado e do certo, do desprezível e do valioso, sempre se submete ao crivo da sociedade. Quando alguém é privado do seu bem maior, a vida, cabe à sociedade pronunciar-se sobre o que se deve fazer e para onde encaminhar o transgressor de tão exaltado princípio jurídico. Houvesse tempo hábil para a vítima perdoar seu agressor antes do evento morte, perduraria a competência do Conselho de Sentença, pois se entende que o crime é contra toda a sociedade, e não apenas contra a vítima na sua pontualidade. Quando o filho da vítima interrompe os trabalhos da plenária para devolver ao réu o mal recebido, mediante o emprego do mesmo procedimento daquele que se acha assentado no banco dos réus, está a dizer que não reconhece a instituição do Tribunal do Júri. Não percebe ele que está repetindo na própria conduta aquilo que toda a sociedade deplora, ou seja, fazer justiça ao próprio modo, desprezando o fato de que o direito é, do começo ao fim, sempre social. O direito foi criado, dentre outras razões, para extinguir a vingança privada e o hábito de vendetas, a fim de pôr término a rivalidades entre indivíduos e famílias. Agora, quem será réu em Tribunal do Júri, não há de ser outro, senão o parente da vítima, dito de outro modo, sairá da plateia e tomará assento na bancada destinada a quem protagoniza a conduta direcionada ao ânimo de exterminar a vida de outro ser humano, em outro procedimento de mesma natureza. Toda vitória individual deriva do esforço próprio do vitorioso, em concurso com a ação de outras mais pessoas. O lado reverso disso, é que outras pessoas podem fazer o movimento inverso e emperrar nossos projetos e objetivos. E quando isso ocorre, o prejudicado tem o direito de defender-se, mas esta defesa não comporta a eliminação da vida do seu embargante. O episódio aqui comentado expõe, com alguma nitidez, a privação cultural em algumas regiões do nosso país, pois não se conhece bem as atribuições do Estado, a abrangência do direito, a relação entre o indivíduo e a sociedade. Este justiceiro mostrou a todos que dez mil anos de civilização não lhe dizem nada, não lhe representam nada. A subjetividade da emoção suplantou a universalidade da razão. Se for inteligente, agora ele poderá entender o jeito certo de fazer as coisas acontecerem: ele será submetido ao procedimento que externou recusar deferência. Existem universais! Uma ritualística será movimentada, uma vez mais, para que fique claro, ao justiceiro e a quem possa interessar, que a idiossincrasia do sujeito é menor do que o direito civilizacionalmente posto. Solidarizo-me com os familiares de vítimas de assassinato, mas pontuo que a construção da justiça, punitiva e reparadora, nos crimes dolosos contra a vida, é monopólio do Tribunal do Júri, ao menos no estágio atual de desenvolvimento do direito brasileiro e mundial. O Estado tem mais estrutura, melhores técnicas e melhores teorias para processar demandas cujo perfil vimos resenhando ao desdobrar destas alíneas. A ninguém cabe “cuidar pessoalmente” daquilo que é alvo de previsão legal em sentido contrário, ou seja, definido como atribuição exclusiva e privativa do Poder Público. Faz justiça quem deixa a justiça fazer o que lhe cabe. Luz!