Acordemos!

A percepção que tenho é que estamos passando por um profundo sono existencial. E os fatos testificam o que sinto. Vejamos o que aconteceu nos Estados Unidos da América, no Estado do Arizona, na cidade de Tempe. Denise Proudhomme, de 60 anos de idade, era funcionária da instituição financeira Wells Fargo, e veio a óbito […]

Por Israel Minikovsky 16 min de leitura

A percepção que tenho é que estamos passando por um profundo sono existencial. E os fatos testificam o que sinto. Vejamos o que aconteceu nos Estados Unidos da América, no Estado do Arizona, na cidade de Tempe. Denise Proudhomme, de 60 anos de idade, era funcionária da instituição financeira Wells Fargo, e veio a óbito no ambiente de trabalho. O último registro foi no dia 16 de agosto de 2024, pela manhã. Em razão de mau odor, no dia 20, quatro dias depois, se depararam com o cadáver já em decomposição. Eu poderia desfiar um terço e soltar o verbo em face do modo capitalista de produção, em face dos próprios norte-americanos, como nação, mas prefiro abrir mão destas vias retóricas. Abstraindo-se do sistema econômico e da cultura ianque, o que remanesce é o ser humano, condição que nós, brasileiros, e todos os demais povos da terra, partilhamos com os habitantes do país mais rico do mundo. Estamos numa situação de tão profundo torpor, que mal percebemos as pessoas morrerem ao lado da nossa mesa de trabalho. A integração de todos os trabalhos com o sistema informatizado global, a rede mundial de computadores, na qual misturam-se eficiência e totalitarismo, vem afetando-nos no sentido de nos dessensibilizar. Focados em produtividade e assertividade, perdemos a conexão com as pessoas com quem temos proximidade física. Não havia sinais de violência no corpo de Denise. Ela muito provavelmente deve ter morrido por infarto ou outro mal súbito. Mas a necrópsia pode apurar maiores detalhes. Em muitos ambientes de trabalho não há uma equipe, há um amontoado de indivíduos, pois eis que entre eles inexiste entrosamento. Em qualquer local que estejamos, é fundamental o sentimento de pertença. Trate-se de uma família ou de um grupo de trabalho. Contudo, no caso de Denise, ao que parece, ela não era sequer visualizada, nem pelos gestores e nem por seus colegas de expediente. O nível de impessoalidade excedeu todos os limites. Sábia a lei da natureza, que com suas colônias bacterianas, agrediu o bedelho dos trabalhadores, fazendo-os notar o corpo sem vida da ex-colega. Alteridade é ver no rosto do outro o próprio eu. Eu devo me preocupar com o outro, interessar-me pelo seu bem-estar. O corpo, sem marcas de violência física, denota ausência de ódio em desfavor da ex-vivente. Entretanto, a indiferença, definível como um estado de ausência de sentimento, seja ele positivo ou negativo, pode ser muito pior do que o ódio. Paralelamente, a amoralidade pode ser pior do que a imoralidade. O ser humano é cultural e histórico. Ele é essencialmente simbólico. Ele é social e afetivo. O evento aqui noticiado afronta todas as nossas maiores características ontológicas. Onde está o nosso zelo pela pessoa do outro? Esvaziou-se a ética? Sim, porque o maior fundamento da ética é o amor, é o olhar vertido para o outro. Condenamos a violência recíproca entre palestinos e israelenses, mas sequer percebemos as pessoas morrendo a centímetros de distância de nossa baia de operações. Dignemo-nos vocalizar um “bom dia” e um “até amanhã”, aguardando a resposta no turno de fala do colega, e não vamos esquecer nossos mortos no local de trabalho. Se temos dificuldade de realizar a transição hermenêutica entre o contexto bíblico e os dias de hoje, em que sofremos, trabalhamos e vivemos, parece-me que podemos ser “o bom samaritano” no próprio ambiente de trabalho, buscando incluir aquela pessoa que padece de dificuldade de integração com os demais. Para além de toda a moralidade e eticidade, a ocorrência depõe em desfavor da sociedade em que ela veio à tona. Pois uma situação de tamanho descalabro acusa para uma falta de competência que é também operacional, prática, administrativa, enfim, procedimental. O ocorrido lesa nossa credibilidade de agentes e de promotores de boas práticas sociais. A infrequência da funcionária deveria acionar não só o departamento de recursos humanos, devedor do cuidado para com os colaboradores da instituição, senão também a suscitação de abertura de processo disciplinar, contando com a hipótese de desídia por parte da faltante. No entanto, todas as lógicas e abordagens possíveis da questão parecem ter falhado. O velho provérbio latino rotula este coetâneo episódio, com um nível de propriedade ímpar “Dormientibus non succurrit jus”, em bom português, “o direito não socorre aos que dormem”. Despertemos! Por nossos olhos, entre em nós a luz!