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Café Salgado

A última moda alimentar partiu da Ásia, o café salgado. Por que alguém colocaria sal no café, ainda que em uma pitada módica? É simples: para ressaltar o sabor do doce. Esse truque, diga-se de passagem, é velho. Eu mesmo, às vezes, saboreio chimarrão com chocolate, situação em que ambas as viandas destacam o contrassabor […]

Por Israel Minikovsky 16 min de leitura

A última moda alimentar partiu da Ásia, o café salgado. Por que alguém colocaria sal no café, ainda que em uma pitada módica? É simples: para ressaltar o sabor do doce. Esse truque, diga-se de passagem, é velho. Eu mesmo, às vezes, saboreio chimarrão com chocolate, situação em que ambas as viandas destacam o contrassabor uma da outra, reciprocamente. Quem já não experimentou, ainda que por mera curiosidade, chocolate com pimenta? Aliás, essa lógica da oposição paladárica nasce com o próprio chocolate. Eis que o cacau é amargo, razão pela qual a adição de açúcar torna o produto final, o chocolate, em algo apetecível. Um pouco de açúcar na conserva de pepino também é bem-vindo. A bem da verdade, é a contradição que atribui sabor e sentido à nossa vida. Em toda a nossa vida nos deparamos com contradições. Na política está a esquerda e a direita. Na convivência com pessoas vemos a rivalidade entre racionalidade e estupidez. Na religião vemos o sagrado e o profano. No plano individual temos a felicidade e o sofrimento, a saúde e a doença. Não são apenas as papilas gustativas que funcionam por contraste, calcadas na alternância entre doce e salgado, azedo e amargo, e assim por diante. O mesmo ocorre com toda a nossa percepção e a nossa inteligência. Não existe o provérbio de que, falar com objetividade, equivale a “pôr o preto no branco”? A nossa discriminação auditiva consiste em identificar padrões, em cotejar diferenças. Para isto existem vogais, consoantes e dígrafos. Pelo tato, ainda que de olhos fechados, identificamos os mais diversos tipos de textura. Passar a mão no pelo macio de um coelho é diferente de passar a mão sobre uma lixa de alta rugosidade. A própria lógica, fundada por Aristóteles, estabelece o firme fundamento da atividade pensamental de nosso intelecto, tendo como axioma a identidade de A em relação a si próprio, e sua contraposição a não A, culminando na exclusão de uma terceira posição entre estes dois polos. Na seara jurídica há o entendimento de que nas ações em que não há pretensão resistida não cabe fixação de honorários. Isto sinaliza claramente que a oposição é a essência mesma do direito. O fim do Estado e da política é gestar as contradições sociais sem que seja necessário apelar para a violência física, ou que, se for preciso, fazer uso dosado da violência na razão direta em que isto se mostra imprescindível, sem opção de contorno que o valha. Não há como mitigar, de uma vez por todas, a contradição, ela deve ser administrada. A fome é o melhor tempero da comida, como o cansaço é o travesseiro mais macio. No fundo, os dissabores que tanto deploramos acabam potencializando o valor da vitória e da conquista. A própria cultura movimenta-se de um lado para outro, qual pêndulo. Os progressistas não apenas se deparam com a oposição orquestrada dos conservadores para atravancar os avanços, senão pior do que isto, eles estão unidos em nome de pautas reacionárias. É por isso que a civilização evolui tão demoradamente. A mora de que falo se refere ao campo moral. Sim, porque na técnica, caminhamos a passos largos, entrando na lógica da natureza e do mundo físico, fazendo com que o universo funcione a nosso favor. A eficiência das máquinas deveria ser replicada na esfera de nossa convivência com nossos semelhantes. No geral, casa-se com uma pessoa que tenha afinidade com nosso modo de pensar, com uma pessoa que comunga conosco certos valores. Ainda assim, é no ambiente doméstico que a diferença tem de ser gerida e em razão de que se impõe a necessidade de construir o consenso. No contexto do cristianismo primitivo, defender uma “heresia” era ser partidário daquilo que hoje nominamos de “viés”. Ou seja, ninguém tinha a liberdade de interpretar o cristianismo ao seu bel prazer. À medida que a igreja foi se consolidando institucionalmente, aumentou a repressão aos hereges, àqueles que tinham seu próprio ponto de vista, destoante da interpretação oficial. Por conseguinte, fazendo um trocadilho etimológico, ao fim e ao cabo, emerge esta peroração, o que nos tira da linha de mediocridade, o que evidencia os nossos dias bons, respectivamente, é o sermos hereges, por um lado, e termos dias cinzentos, por outro. Compreendendo que é assim que o ser humano funciona, nossos irmãos asiáticos tiveram a singela e genial ideia de colocar um pouco de sal no café. Que tal ler um bom livro de filosofia, com todas as competências de leitura que ele exige, para ressignificar a trivialidade e banalidade do cotidiano?