Democracia em risco
Em 19 de março de 2023, o neurocientista Miguel Nicolelis afirmou que “a igreja da tecnologia pode destruir as democracias”. O termo emprestado “igreja” sinaliza para a incompatibilidade entre teocracia e democracia. Nicolelis leciona que a inteligência artificial não é nem inteligente e nem artificial. Em verdade, é uma plataforma que trabalha com grandes bancos […]
Por Israel Minikovsky 13 min de leitura
Em 19 de março de 2023, o neurocientista Miguel Nicolelis afirmou que “a igreja da tecnologia pode destruir as democracias”. O termo emprestado “igreja” sinaliza para a incompatibilidade entre teocracia e democracia. Nicolelis leciona que a inteligência artificial não é nem inteligente e nem artificial. Em verdade, é uma plataforma que trabalha com grandes bancos de dados. A inteligência artificial é reducionista quando circunscreve a mente humana a um algoritmo. A relação entre o império da inteligência artificial e o fim da democracia consiste nisto: em última análise, o fundamento da democracia é a inteligência humana. A inteligência artificial impacta fortemente a mente humana, no sentido de diminuir-lhe a criatividade. Para quem tem formação em filosofia é chover no molhado, mas como escrevo para todos, recordo que a filosofia e a democracia nasceram juntas, na mesma época e no mesmo lugar, para satisfazer demandas partilhadas. O duplo êxito da Atenas da antiguidade consistiu na percepção de que a inteligência e o acesso à participação nas decisões de interesse comum constituem os alicerces de uma comunidade feliz e harmônica. Tecnologia é predominantemente conhecimento. Mas a democracia assenta-se sobre a sabedoria. Esta é superior àquele, à medida que ensina o modo correto do seu emprego. Quando temos mais conhecimento do que sabedoria, começamos a nos colocar em risco. A fala de Nicolelis é simultânea à atitude de Elon Musk, que assinou uma carta pedindo uma pausa de seis meses nas pesquisas referentes à inteligência artificial, desde que se vislumbrou a possibilidade de ela fugir do controle, alienar as pessoas, ou mesmo trabalhar contra os interesses dos seres humanos. O bem-intencionado empresário e filantropo diz ter adquirido o Twitter para fomentar a liberdade de expressão. O mundo em que vivemos é este: de um lado temos os visionários, os redentores da tecnologia que começam a enxergar que a própria técnica é anfíbia, e a maior parte do povo à mercê da própria ignorância, sendo miseravelmente manipulada por políticos conservadores, por agentes econômicos que encarnam a elite do atraso, por ministros de confissão religiosa apegados a moralismos de verniz e nenhum engajamento com as legítimas causas sociais. As classes populares não se poupam de dividir a atenção entre o boteco e a religiosidade vazia, e por isso mesmo, em quase todas as instâncias o que se assiste é ao faz de conta, em que, na real, o enganado e o enganador é o mesmo indivíduo. Platão e Aristóteles criticavam o teatro por entendê-lo nocivo à moral. No teatro o que se exalta é a encenação, o fingimento, a conduta afetada e interesseira. Os referidos gênios estavam certos. Ponho-me a imaginar se pudéssemos transportá-los ao século XXI, o quão decepcionados ficariam. Porque em nossa sociedade, os palcos estão montados em praticamente todos os lugares. A diferença é que a persuasão dos figurantes conta com uma aliada poderosa, a polêmica inteligência artificial. Esse debate não deve ficar restrito ao Judiciário e aos especialistas da área. É toda a sociedade que deve discutir o assunto. Em pouco tempo, no Brasil, passamos da inexistência de computadores e da desconexão, para a onipresença e a hiperconectividade. Ou a democracia coloca a inteligência artificial no centro dos debates para que ela nos sirva da melhor forma, ou ela vai se servir da sociedade, para favorecer alguns, e prejudicar a todos, com a derrocada do supremo valor político, a democracia e suas instituições. Democracia é luz!