Página Inicial | Colunistas | ELEIÇÕES MUNICIPAIS VIII – O que “assistimos” durante a campanha eleitoral!

ELEIÇÕES MUNICIPAIS VIII – O que “assistimos” durante a campanha eleitoral!

Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia.

Por O Brasil como nos parece 58 min de leitura

Sandro Luiz Bazzanella 

Professor de Filosofia

No último dia 06 de outubro de 2024, as urnas confirmaram prefeitos e vereadores eleitos em primeiro turno para municípios e capitais com menos de 200 mil habitantes (para municípios e capitais com mais de 200 mil habitantes haverá segundo turno no dia 27 de outubro de 2024) com base no direito de voto conferido socialmente e institucionalmente aos brasileiros que se enquadram nos requisitos exigidos para usufruto do mesmo, de votar e ser votado.  No que concerne aos resultados das urnas, que se manifestam no fortalecimento (ou na perda de espaço político e social) de determinadas siglas partidárias e, como tal representantes de grupos e concepções sociais que se confrontarão novamente nas eleições estaduais e federais de 2026, multiplicam-se excelentes análises disponíveis nos mais diversos veículos de comunicação.

O que nos interessa colocar em debate nesta análise não são os resultados quantitativos e finais das urnas, mas aspectos institucionais e qualitativos do debate político ocorrido nos meses de campanha eleitoral. Nesta perspectiva, salientamos os seguintes aspectos:

  1. A visão de mundo neoliberal que, para além de ser liberal – mas este é assunto para outro momento -, tornou-se hegemônica na atualidade. Apresenta-se como um modo de organização institucional e social, que desloca o conflito entre as classes sociais, promovido pelo regime de acumulação de capital assentado na expropriação e concentração do trabalho humano socialmente produzido, para o controle do Estado.  Trata-se de privatizar os bens públicos administrados pelo Estado, cercear a implementação de políticas públicas, bem como arrefecer o avanço de direitos sociais. A opinião pública é orientada a vociferar em defesa de um Estado mínimo, desconsiderando que na razão inversa tal condição do Estado significa precarização de serviços públicos, precarização das condições de vida individuas e sociais. Por outro lado, elites econômicas exigem um Estado máximo operando a partir de sólido ajuste fiscal que drena os recursos públicos no pagamento de dividendos, juros da dívida pública, assim garantindo os interesses de grupos econômicos minoritários em detrimento dos interesses sociais. Ainda nesta direção, o neoliberalismo como um modo de subjetivação conforma uma sociedade individualizada. Os indivíduos em sua condição atomizada são convocados diuturnamente a tornarem-se empresários de si mesmos (empreendedores no jargão presente nos discursos dos “managers”, dos “coachings” – ventrílogos de um modo de vida submetido integralmente aos imperativos do dinheiro, do capital), a competirem ferozmente com outros indivíduos na luta pela sobrevivência, a conduzir suas vidas individualizadas sob os imperativos do endividamento. Na “Fábrica do homem endividado” (Lazzarato, 2013), endividar-se é condição de afirmar a própria existência. 

1.1 Neste contexto neoliberal de disputa e controle do Estado, de subjetivação, atomizações de vidas individualizadas se evidenciam o esvaziamento de uma das principais instituições constitutivas do sistema social e político representativo, os partidos políticos. O que “literalmente assistimos” durante a campanha eleitoral foi a redução dos partidos a meras siglas partidárias usadas, senão alugadas para o período eleitoral.  As ideologias políticas partidárias, que outrora diferenciavam os partidos, bem como suas concepções de Estado, de sociedade, de gestão pública, de participação popular desapareceram, ou foram interditadas.  Meras siglas que agrupam candidatos, discursos e efêmeras promessas de “fazer mais e melhor” pela população. O eleitor foi exposto ao desaparecimento das ideologias políticas partidárias comprometendo a formulação de critérios de análise e de escolhas de candidatos e, sobretudo propostas políticas. Neste cenário, passam imperar preferências pessoais, preconceitos, o indicativo do líder religioso de plantão, ou mesmo o “efeito de manada” que se manifesta na escolha do candidato que lidera as pesquisas eleitorais.

2. Na sociedade de massas, de plena produção e consumo, de indivíduos transformados em empresários de si mesmos, ou transformados em recursos à disposição do capital na forma do “capital humano”, onde a vida transcorre capturada pela binária relação entre débito e crédito, competir não é uma opção. É a própria condição da luta pela sobrevivência dos indivíduos. Porém, não se trata de uma competição colaborativa (se é que isto é possível (?)) que se transforma em ganhos sociais. Trata-se de uma competição agressiva, senão com a sanha da aniquilação do outro, do indivíduo competidor. Neste contexto social individualizado é preciso rever cotidianamente as estratégias de combate, de luta, de sobrevivência. O inferno são os outros, aqueles que discordam do estado de anomia social que justifica a “luta pela sobrevivência”, ou ainda, aqueles que insistem no discurso da justiça social, do combate a miséria, à pobreza, em programas sociais, em políticas públicas e afirmação de direitos sociais.  Estes indivíduos que se negam participar da “miserável e decrépita luta individualizada pela sobrevivência”, que insistem na condição social da existência humana, da produção e do compartilhamento da riqueza socialmente produzida são rotulados de socialistas, anarquistas, comunistas.  Nesta perspectiva, a sociedade individualizada apresenta-se agressiva, determinista, senão fundamentalista ao afirmar peremptoriamente que o capitalismo é o único modo de produção que “deu certo”, que promove o progresso e o desenvolvimento humano. Estes fundamentalistas se negam a reconhecer que as experiências sociais humanas são extremamente diversas e se perdem nos tempos que conformam a presença humana na terra. 

2.1 Destas variáveis, entre outras possíveis resultam que o período eleitoral foi marcado pela violência discursiva e física (a cadeirada, entre outras formas de agressões ocorridas). Hannah Arendt em sua obra “Sobre a violência”, argumenta que a violência destrói as relações de poder que legitimam o próprio exercício do poder. Sob tais pressupostos, a violência compromete, senão destrói a possibilidade dos seres humanos constituírem um mundo comum e compartilhado. Ao longo do processo eleitoral manifestou-se a já recorrente estratégia utilizada pela extrema direita (terroristas da política) em outros momentos, a violência das fake news, a produção e disseminação da mentira em relação aos candidatos adversários e as suas propostas. O uso reiterado da violência discursiva, na forma de ameaças a candidatos adversários, na forma da compra de votos (estratégia de grupos políticos e econômicos que remonta a práticas do coronelismo e  do voto de cabresto,  marcas da história do Brasil em período não muito distante) compromete o debate político e, sobretudo a possibilidade do eleitor analisar o teor e a consistência das propostas políticas apresentadas.  A violência na política promovida pelas fake news, pelas agressões físicas, pela compra do voto promovem a espetacularização da política. A espetacularização da política incendeia as paixões dos indivíduos e, neste contexto aniquila-se a empatia, a generosidade e, sobretudo a capacidade de discernimento necessária à manutenção das relações de poder, a partir das quais se constitui e se compartilha neste momento o mundo e, dramaticamente compromete o mundo destinado as futuras gerações. 

3. A organização política, econômica e social das sociedades ocidentais nos últimos trezentos anos se constituiu em torno do Estado. A constituição do Estado requer o domínio e o controle de recursos estratégicos. São estes recursos: a) o corpo biológico dos indivíduos; b) o corpo biológico da população; c) o território com fronteiras definidas e seus recursos naturais. Assim, o Estado administra, faz a gestão e controla os corpos dos indivíduos e o corpo da população. Corpos individuais e populacionais saudáveis em sua condição biológica implicam na capacidade de produção, de consumo, de geração de riqueza fortalecendo o Estado e, sobretudo os grupos sociais que o controlam. Desta condição, resulta para a politóloga Hannah Arend que o corpo em sua condição biológica tornou-se o objeto por excelência da política na modernidade. Ou dito de outra forma, o corpo biológico dos indivíduos e da população foi estatizado e constitui objeto da política estatal.  Assim, o corpo em sua biologicidade ao tornar-se objeto por excelência da política implica nos limites do debate político como condição sine qua non de promover e garantir o espaço público, os bens públicos necessários ao adequado compartilhamento do mundo.  

Nesta direção, mas contemplando outros aspectos teóricos e conceituais, o filósofo francês Michel Foucault demonstra em algumas de suas obras que a racionalidade política, econômica, social e jurídica moderna se constitui num regime de governamentalidade biopolítica. A vida biológica dos indivíduos e da população se torna o objeto por excelência da política estatal, a partir de técnicas de disciplinarização, de docilização, de normalização e de controle dos corpos e mentes. Assim, toda a política moderna se apresenta como biopolítica. Por seu turno, para o filósofo e jurista Giorgio Agamben, diferentemente de Foucault que situa a biopolítica como fenômeno advindo com o surgimento do Estado moderno, toda política ocidental sempre foi biopolítica desde suas origens na polis grega antiga. O fato determinante para o filósofo italiano é que a biopolítica foi levada ao extremo na contemporaneidade tornando o campo de concentração o paradigma social em curso na atualidade. Ou seja, a pavorosa experiência dos campos de concentração, sobretudo na Segunda Guerra Mundial (na medida em que experiências com campos de concentração já haviam se manifestado desde o século XIX com a Inglaterra e Estados Unidos, entre outros Estados naquele período) replicou numa escala industrial técnicas de administração, gestão e controle na produção da morte em massa de indivíduos e grupos étnicos como judeus, eslavos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, bem como grupos políticos como comunistas e anarquistas.  Reitere-se que estes pensadores procuram demonstram que quando a vida biológica se torna o objeto por excelência da política já não há mais possibilidade da própria política como arte da palavra e da negociação em torno do compartilhamento do mundo entre as presentes e futuras gerações.

3.1 O que assistimos ao longo da campanha eleitoral foram candidatos ao executivo e ao legislativo indiscriminadamente concentrarem suas propostas políticas em torno dos temas da saúde, da educação, do emprego e da mobilidade urbana, entre outras variações. Estas se apresentam como temáticas biopolíticas, pois se manifestam como propostas de administração, de gestão pública de saúde dos indivíduos e da população, de aprimoramento técnico e profissional como condição de intensificar a participação dos indivíduos no processo produtivo (trabalho), e, a partir do acesso à renda participar da sociedade do consumo, sobre a qual se assenta parte da dinâmica econômica nas sociedades individualizadas de condução da vida sob a lógica do débito e do crédito. 

Neste cenário, os candidatos ao executivo e ao legislativo confundiam o eleitor ao apresentarem-se como gestores eficientes e eficazes (lembremo-nos de Adolf Eichmann um gestor eficiente e eficaz da logística nazista de transporte de milhares de seres humanos para os campos de concentração) da “máquina pública” (o termo “máquina” é alusão direta ao mundo empresarial e produtivo privado).  Slogan de campanha recorrente entre as mais diversas candidaturas era: “…. fazer mais e melhor ….”. Ou dito de outra forma, o paradigma biopolítico gerencial sobre os recursos humanos individuais e populacionais do município apresentou-se de forma clarividente ao longo da campanha eleitoral. Ato contínuo e decorrência lógica, os candidatos esforçavam-se por se apresentarem a partir do talhe e do figurino do empresário como “melhor gestor” da coisa pública. Transmitiu-se aos eleitores a ideia reducionista da política como “gestão da máquina pública’ e, de que o político ao exemplo do empresário busca a eficiência e a eficácia da administração pública. Nesta direção, não faltaram candidatos que comparavam a administração pública com a administração de empresas, ou mesmo com a administração doméstica. Obtusidades. Esferas incomparáveis pela natureza de sua condição. Desta situação resulta a desconsideração nos discursos de campanha em relação a participação popular nos debates sobre definições de governo em relação ao espaço público, aos bens públicos, bem como a definição de estratégias e ações de preservação do mundo para as presentes e futuras gerações. Assim, o modelo gerencial-empresarial e biopolítico se apresentou de forma majoritária ao longo do período eleitoral.

Prefeitos e vereadores foram eleitos para os próximos 4 (quatro) anos. O paradigma bipolítico de gestão dos recursos humanos à disposição da lógica do regime de acumulação do capital continuará seu percurso acusando a política de ineficiência e, apresentando o modelo de gestão empresarial eficiente e eficaz com melhor alternativa à “administração da máquina pública”. Apaga-se do imaginário individual e social a necessidade da participação popular na gestão pública. Somente a “tecnocracia”, o “governo dos técnicos” obedientes e fieis aos imperativos neoliberais e do regime de acumulação de capital é que detém a verdade em torno das melhores formas de gestão biopolítica dos recursos humanos e naturais à disposição do Estado e das elites econômicos que o controlam e dele se locupletam escandalosamente. 

Sob a perspectiva filosófica de Nietzsche, estamos atravessando um niilismo profundo caracterizado pela perda de sentido e finalidade das instituições políticas, sociais, econômicas e religiosas que acomodaram durante séculos modos de vida, formas de ação e perspectivas de compartilhamento do mundo. As sociedades de massas, espetacularizadas, de plena produção e consumo, de governamentalidade da vida humana sob a lógica do crédito e do débito, de exploração massiva da vida em sua diversidade apresentam-se como a expressão tácita deste niilismo profundo que se expressa em sua obsessão pelo progresso, pelo desenvolvimento. E é nesse contexto niilista que se manifesta a pequena política praticada pelos zeros somados, pelos “gestores”, pelos “técnicos” que se arvoram autoritariamente o direito de decidir questões públicas a partir da eficiência e da eficácia, usurpando, o debate, a participação, a experiência política da comunidade. Neste contexto, urge profanar a “pequena política” e devolver a “Política” por excelência ao uso comum, ao uso da comunidade na constituição de uma “Grande Política” advinda da experiência realizada no espaço público potencializando a expressão política das formas-de-vida das presentes gerações comprometidas em garantir um mundo adequado às futuras gerações.

Sugestões de leitura:

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro, 2009.

LAZZARATO, Maurizio. La fábrica del hombre endeudado. Ensayo sobre la condición neoliberal. Buenos Aires: Amorrortu, 2013.