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Falência da Livraria Cultura

Uma das maiores livrarias do país sucumbiu à falência, decretada pela Justiça, e teve de cerrar as portas do espaço, situado em área central da cidade de São Paulo. Do ponto de vista simbólico, ao menos para mim, o impacto é de uma derrota militar na mais estratégica de todas as guerras. Funcionários de editoras […]

Por Israel Minikovsky 14 min de leitura

Uma das maiores livrarias do país sucumbiu à falência, decretada pela Justiça, e teve de cerrar as portas do espaço, situado em área central da cidade de São Paulo. Do ponto de vista simbólico, ao menos para mim, o impacto é de uma derrota militar na mais estratégica de todas as guerras. Funcionários de editoras estavam encaixotando livros, que estavam no local, sob o regime de consignação. É claro que a ocorrência reflete uma mudança de paradigma. Com a internet, a aquisição de recurso cultural físico retrocedeu enormemente. Entretanto, devemos considerar a ânsia avarenta desmedida, da parte de gráficas, editoras, distribuidoras e livrarias. O pobre do autor é o que menos recebe. Isso, quando não, os livros são vendidos e os direitos autorais não são entregues. Percebe-se, também, a falta de pessoas afinadas com esse ramo. Quem é comerciário de livraria, precisa ser leitor tão ávido quanto quem ingressa ali para investir em conhecimento. Vender livro não é como vender material de limpeza. Não é mera coincidência que empresas do ramo da cultura batam as portas, justamente após o quadriênio de uma gestão, descomprometida com direitos humanos, direitos sociais, educação, cultura, pesquisa científica e com a vida dos administrados. Em Cuba, por exemplo, boa parte dos livros são impressos com papel de jornal. Por que, então, aqui no Brasil, o papel tem de exibir qualidade extrema, ser espesso e com capa dura? Por que elitizar a cultura? Cultura é algo que se multiplica ao se dividir. A cultura é o bocado de cinco pães e dois peixinhos. Ela opera o milagre da multiplicação e da satisfação. O processo falimentar, das atividades empresárias do conhecimento e da informação, evidencia a incapacidade das leis mercadológicas de gerir este filão da realidade humana, centrado no quali, e não no quantitativo. Nunca antes, e nem mesmo agora, a civilização brasileira atribuiu o devido valor à cultura, seja ela própria ou importada. O espaço de uma livraria física é o experimento ideal em que um jovem pode sonhar em se tornar alguém, mediante a intimidade com a cultura. Suprimida esta mediação, arreda-se para longe a própria meta, o próprio objetivo final. A tese do materialismo histórico é esta: antes de estudar, instruir-se, pesquisar e compreender, o ser humano precisa alimentar-se, vestir-se, residir, locomover-se, etc. Paradoxalmente, é numa biblioteca ou livraria que ele toma essa consciência de si, do seu ser social. O fato de o livro não ser um item da cesta básica do cidadão comum, itera a teoria marxiana do salário: ele cobre a mera manutenção e reprodução da mão de obra, chamada força de trabalho, e nada mais. Na real, é dangerosíssimo ofertar um plus ao trabalhador, ainda que ele seja aplicado, assíduo e responsável. Vai que ele entre numa livraria e compre um livro! Vai que ele entenda o que é alienação, acumulação primitiva, materialismo histórico e mais-valia! Melhor, é fechar todas as livrarias o mais rápido possível. Qualquer brecha que coloque em risco o processo de reprodução e ampliação do capital deve ser banida. Não sem razão, pensa o capitalista, acerca dos também capitalistas, empresários do conhecimento e informação: “ou eu acabo com o negócio deles, ou o negócio deles acaba com o meu”. Bem honestamente, demorou para dar no que deu. Perdeu-se uma batalha, a luta é renhida, mas, como diz o gaúcho, “não está morto quem peleja”! A bravura e a resistência cultural fazem parte de uma bravura e de uma resistência mais amplas, que se identificam com o pensar e o agir político. Disso não abrimos mão, e haveremos de honrar até o último suspiro. Luz, quando mais precisamos dela! (Logo após a redação deste artigo, o Poder Judiciário acatou liminar e suspendeu a decisão que decretou a falência da empresa mencionada).