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Fernando Botero

Aos 15 de setembro de 2023 faleceu Fernando Botero, então com 91 anos de idade. O artista colombiano era vulgarmente conhecido como “o pintor das gordas”. Embora a expressão não seja de todo inverídica, trata-se de uma generalização precipitada. Botero expandia volumetricamente não só pessoas, mas também objetos ou paisagens mortas. Aliás, esse traço sui […]

Por Israel Minikovsky 15 min de leitura

Aos 15 de setembro de 2023 faleceu Fernando Botero, então com 91 anos de idade. O artista colombiano era vulgarmente conhecido como “o pintor das gordas”. Embora a expressão não seja de todo inverídica, trata-se de uma generalização precipitada. Botero expandia volumetricamente não só pessoas, mas também objetos ou paisagens mortas. Aliás, esse traço sui generis, a dilação dos corpos, foi apelidada, não gratuitamente, de “boterismo”. Vejo o trabalho de Botero como verberação das vanguardas artísticas pós-Segunda Guerra, como futurismo, cubismo e similares. Expressar-se por imagens rotundas é uma espécie de conceito ou concepção estética. Todos sabemos que Mona Lisa foi idealizada por Leonardo da Vinci, essa pérola que já conta com mais de cinco séculos. E Botero reinventou Gioconda, rendendo-lhe mais alguns “quilos”. Isto deixa claro que a obra de Botero é, essencialmente, uma releitura. Botero, no entanto, não foi “só” pintor, mas também escultor. E as suas obras esculpidas são marcadas pelo mesmo traço, a projeção expandida. Botero pode ser interpretado segundo vieses diferentes. Hoje existe um movimento forte de inclusão de corpos obesos na paisagem social, inclusive na moda, o nicho das macérrimas. A propósito, as hipermagras dominam a moda, ou são por ela dominadas? Assim como muitas pessoas são preteridas pela condição social, racial, por questão de orientação sexual, o obeso padece num mundo feito para pessoas padronizadas ou medianas. Por conseguinte, a obra de Botero pode ser entendida como um grito a favor de grandes medidas corporais e contrária à discriminação e ao preconceito calcados nas características físicas. Outro direcionamento interpretativo da obra de Botero é a segurança alimentar e nutricional. Sabemos que a insegurança alimentar nos países periféricos significa fome, enquanto o mesmo conceito, em países de centro, corresponde à obesidade. Por fim, a derradeira interpretação é a que usa da superalimentação para retratar a ganância do ser humano. Isto é, enquanto uns passam fome, outros estão empaturrados. Em 11 de março de 1993 o jornalista Kevin Carter captou uma fotografia retratando uma menina sudanesa prostrada ao chão, tendo atrás de si um abutre, aguardando óbito para devorar o cadáver. A fotografia, em instantes, correu o mundo. A imagem rendeu ao repórter o Pulitzer Prize de Fotografia. A imagem foi usada pelo The New York Times e sensibilizou a opinião pública para a questão da guerra e da fome no continente africano. A imagem sugere uma inversão da cadeia alimentar. Quase sempre, afinal, o ser humano está no topo. Muitas pessoas entraram em contato com o órgão de imprensa para saber o que a equipe de mídia fez por aquela criança. Aliás, rios de tinta foram derramados sobre o assunto: quem faz cobertura midiática tem algum tipo de responsabilidade ética em relação às vítimas de uma conjuntura? Ou isso extrapolaria as responsabilidades dos repórteres? Como Kevin Carter nada havia feito pela criança, entrou em crise de consciência, e tempos depois se suicidou. O jaez político do boterismo é inegável. Ele nos faz pensar sobre como a riqueza é produzida e distribuída. Porque a produção determina a distribuição e a distribuição reforça e perpetua o modo de produção. A arte pode ser bela e engajada. Ela pode e deve retratar o agradável (beleza estética) e o desagradável (crítica social). Botero nos mostra que a falta e a fartura são pratos de uma mesma balança. Retomando a fala de Bertolt Brecht – este, teatrólogo – “pode parecer desagradável falar de comida (um assunto trivial), mas eles já comeram!”. Botero foi esse artista sensacional, que nos permite ligar sua produção artística ao marxismo, à psicanálise, à crítica de arte. Em suas telas, andam juntas a contemplação e a provocação. Não há arte neutra. Uma natureza morta imitativa mascara as contradições do sistema social, na medida em que as negligencia, elas ficam fora da pauta artística. Botero sabia que teria que fazer uma escolha. Escolheu bem, preferiu não ser cúmplice. Suas telas são aqueles espelhos que nos fazem passar mal. Para bom entendedor, meia pincelada basta! Luz!