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Gustavo Gutiérrez Merino

O momento da fé cristã, que se vive no Brasil de hoje, é este: políticos sedizentes conservadores, invocando Deus e família, e apelando para o sentimento religioso das pessoas, alegando representar o Reino de Deus no mundo profano, sugerindo serem o prolongamento da Igreja dentro do setor público, pedindo voto para o discurso do retrocesso […]

Por Israel Minikovsky 17 min de leitura

O momento da fé cristã, que se vive no Brasil de hoje, é este: políticos sedizentes conservadores, invocando Deus e família, e apelando para o sentimento religioso das pessoas, alegando representar o Reino de Deus no mundo profano, sugerindo serem o prolongamento da Igreja dentro do setor público, pedindo voto para o discurso do retrocesso e recomendando a frequência ao culto (ou à missa), de um lado, ao passo que, por outro lado, vemos as lideranças cristãs apresentarem a ala direitista como aquela que encarna os valores evangélicos, como a expressão política da genuína espiritualidade cristã. Então temos esse fenômeno, o de igrejas cheias, e políticos retrógrados eleitos com votações expressivas, históricas mesmo. Os discursos recíprocos e mutuamente respaldatórios geraram a máquina da prosperidade, em que o religioso e o político se retroalimentam numa simbiose sem paralelo. Na religião e na política, enquanto sociedade, estamos fazendo a experiência do império da quantidade, esse critério tão querido ao capitalismo, com movimentos que desembocam nas urnas eleitorais e nos templos, cujas bancadas para auditório emplacam número de assentos cada vez mais crescente, batendo recordes de público. Essa conjuntura contrasta com o tipo de Igreja proposto pelo teólogo Gustavo Gutiérrez Merino, o peruano que iniciou o movimento teórico e prático conhecido como Teologia da Libertação. Gutiérrez faleceu em 22 de outubro de 2024, aos noventa e seis anos de idade. O limenho nasceu em 08 de junho de 1928. Em 2018, ao completar noventa anos, recebeu uma carta de ninguém menos que o papa Francisco. Gutiérrez foi ordenado padre em 1959. Foi ele que cunhou a expressão “Opção preferencial pelos pobres”, bordão que marcou a Conferência Episcopal Latino-Americana, ocorrida em Medellín, na Colômbia, em 1968, com o objetivo de articular aplicações derivadas das diretrizes do Concílio Vaticano II. À época em que o líder da Congregação para a Doutrina da Fé era Joseph Ratzinger, que mais tarde ascenderia ao papado sob o nome principesco de Bento XVI, Gutiérrez foi elogiado por preocupar-se com a questão social e por um mundo de justiça, com a forte salva de que o marxismo seria uma má escolha metodológica de análise da realidade. De todo modo, o Vaticano reconheceu a ortodoxia da doutrina e do ensinamento de Gutiérrez. O referido intelectual latino-americano foi premiado com ao menos trinta doutorados honorários. Ele ainda recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades. Ele se tornou dominicano aos setenta e seis anos de idade. A Teologia da Libertação é a interpretação bíblica de acordo com a qual o Senhor Yaweh tira o povo hebreu da escravidão do Egito, porque Ele almeja abolir a opressão já no mundo presente. Os livros proféticos estão recheados de alertas e admoestações sobre o explorar o irmão, leia-se, o próximo. Os evangelhos são claros, é preciso ser rico para Deus, e não para os homens. Não posso me escravizar pelo dinheiro, não posso escravizar meu irmão pelo dinheiro. A partilha é um dos ensinamentos centrais do cristianismo. Ainda que a maior escravidão seja a do pecado, o cristão é desafiado a ser um agente de transformação social, denunciando a injustiça, a corrupção e os problemas estruturais da coletividade de que participa. Gutiérrez denuncia a aliança histórica da Igreja (ou Igrejas) com os ricos, com as elites. Mas a guinada ao Cristo pobre durou pouco. Uma vez mais vemos o alinhamento com os donos do poder. O mais conhecido intelectual da Teologia da Libertação, no Brasil, é Leonardo Boff. Este último denuncia, não exatamente nas mesmas palavras que uso aqui, que a sede administrativa da Igreja Católica se acha na Europa, o que reforça a geopolítica do continente rico a pouco citado, como a instância que rege inclusive a Igreja situada nos continentes periféricos, numa relação de poder e proveito econômico. Ou seja, romper com as amarras do capitalismo global incluiria rever a relação da Santa Sé, e seu modus operandi, para com o resto do mundo. É claro que essa tese não agradou às altas esferas vaticanas. Mesmo porque, no período aludido, o(s) papa(s) em exercício era(m) proveniente(s) de país(es) europeu(s). A discussão promovida por Gutiérrez é atualíssima, cadente. De modo algum residual, contudo o justo oposto: o que vem a ser cristianismo? O que é ser cristão? Jesus Cristo ensinou o amor aos pobres, ou uma técnica de desenvolvimentismo para alavancar a economia das nações, e, com isso, resolver, de uma vez por todas, as demandas sociais que nos acompanham desde a noite dos tempos? Teologia da Libertação é luz!