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Hermenêutica e a Crise do Processo Penal Brasileiro

No dia 16 de agosto de 2023, das 19 às 21h, na modalidade on-line, a Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, ofertou a capacitação “Hermenêutica e a Crise do Processo Penal Brasileiro”, ministrada por Aury Lopes Jr e Lenio Streck. O mestre de cerimônia do evento nos lembrou de que a democracia não é […]

Por Israel Minikovsky 36 min de leitura

No dia 16 de agosto de 2023, das 19 às 21h, na modalidade on-line, a Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, ofertou a capacitação “Hermenêutica e a Crise do Processo Penal Brasileiro”, ministrada por Aury Lopes Jr e Lenio Streck. O mestre de cerimônia do evento nos lembrou de que a democracia não é viver no consenso, do contrário, é viver no dissenso, tratando o outro como igual. Passada a palavra a Aury Lopes Jr, o mencionado jurista recuperou a noção basilar de que existe um limite de atribuição de sentido, de modo que não se pode dizer que uma garrafa é idêntica a um automóvel. Quando estamos diante de um conceito unívoco, emerge indiscutível a carga significativa que ele traz consigo. O Código de Processo Penal é um Decreto-Lei. É um diploma legal que foi colocado em vigência num período autoritário da história política e jurídica de nosso país. Depois da Constituição Federal de 1988 não foi elaborado outro Código de Processo Penal. Vale lembrar, é o CPP que deve adequar-se à CF e não o inverso disso. A verdade é que precisamos de um Código absolutamente novo. Vivemos, hoje, três crises: 1) crise existencial do processo; 2) crise de jurisdição e 3) crise da legitimação do poder. Os dias de agora são dias de tristes novidades jurídicas, verbum gratia, transação penal, delação premiada, negociação da pena. É certo que não devemos e sequer podemos ignorar o direito comparado. Contudo, é preciso colocar limites na própria comparação. Estamos recepcionando coisas que não têm nada a ver com nossa estrutura jurídica e social. Muito antes de nos pronunciarmos sobre a negociação da persecução penal, devemos conhecer os fundamentos do direito de nossa civilização para compreendermos corretamente as práticas. O fato é que estamos tirando a centralidade do poder do juiz. O ministério público tem o poder de acusar, mas cabe ao juiz punir. Aliás, em tempo, é incorreto se falar em jus puniendi. Mesmo que o representante do ministério público peça a absolvição, o juiz continua com o poder de condenar. Divergindo disso, incorremos no erro de transformar o juiz num mero homologador. Divergindo disso, a investigação se torna poderosa, a acusação toma presunção de veracidade. Eis que não se pode falar em “negociação”, não se sabendo exatamente o alcance e a qualidade da prova. O acusador não tem nada a perder, só o acusado. O argumento economicista – otimizar a quantidade da produção com poucos recursos materiais – não pode ser estendido à esfera jurídica. No modelo que começa a enraizar-se, o acusado que não quiser negociar, vai pagar uma pena elevadíssima. A dinâmica se apresenta sob roupagem de ameaça: “se tu não delatares, vou meter-te no sistema carcerário”. (Onde o sujeito é espancado pelos faccionados). Então, a premissa é esta: quanto pior, melhor. Não se tortura, mas se enclausura – para a obtenção da confissão. Isto posto, se há excesso de habeas corpus – fala-se muito em “banalização” do habeas corpus – é porque nos patamares de menor altitude “a coisa está feia”. Dito de outro modo, os advogados estão se deparando com muitos obstáculos, e dentre vários caminhos, o que sobra é o habeas corpus. Em processo penal, a forma é a legalidade, é a garantia, e o seu desrespeito é um prejuízo presumido. Quanto aos documentos regimentais aprovados pelos tribunais, gize-se que um provimento não pode valer mais do que um documento legal aprovado pelo Congresso Nacional. Quem é advogado que milita no processo-crime já se deparou com a situação em que o representante do ministério público se faz ausente da audiência. Nesse contexto, não raro, o próprio juiz faz as perguntas e depois condena o réu pela prova produzida por ele mesmo, magistrado. Ora, a garantia da jurisdição consiste nisto: imparcialidade do juiz, ausência de pré-compreensões, compromisso com o contraditório e a ampla defesa. É preciso que as partes disponham de paridade de armas, de igualdade cognitiva. No plano ideal, portanto, o juiz ignora o caso até se inteirar dele. A banalização da prisão preventiva aponta para a direção de acordo com a qual o grande problema está repousado sobre a figura do juiz. Enfim, nosso processo é (ou está) o pior da América Latina, é o mais primitivo, uma verdadeira barbárie. Feitas as considerações lopesianas, e qualquer erro ou mal-entendido deve ser atribuído ao presente articulista – e jamais ao renomado painelista – foi entregue a palavra ao professor Lenio Streck. Segundo o imediatamente referido filósofo-jurista, no Brasil falta espaço para a suspensão dos pré-juízos. Há que se ponderar que 1) informação não é conhecimento; 2) conhecimento não é saber; e 3) saber não é sabedoria. O paradoxo de nossa época é este: quanto mais informação nós temos, mais aumenta o número de idiotas. Relatou o palestrante que, no regime da URSS, houve uma convocação para definir “o futuro do partido” e alma viva alguma compareceu. Na estratégia seguinte, houve a convocação para apreciar os “Três Amores”. Lotado o auditório, explicou-se que, dos três amores, o primeiro é patológico, o segundo, normal, e o terceiro, este sim, é o “grande amor”. No entanto, que grande amor é este? Ora, o amor ao partido, óbvio! Pois bem, no Brasil de agora, se nos parece que o grande amor deve ser o direito. O direito é o redentor de hoje. Não há que se negar que, em tempos de “homo whatsappians”, dificultoso é fazer triunfar esta proposta. A crise do processo penal está jungida ao nosso sistema de crenças. Você pode até achar que Isaac Newton era um farsante, mas não se joga do décimo andar por causa disso. O perigo mora na crença intuitiva, que não exige respaldo externo. O jurisdicionado não ingressa em juízo para obter a opinião do juiz. O administrado quer que o juiz use a teoria da pólis que se encontra disponível. Esta teoria tem de ser aplicada. Nesse viés, Platão foi o primeiro pensador que denunciou fake news. Ser Platão, hoje, equivale a entrar no grupo de whatsapp e dizer “vocês estão todos errados”. Adão e Eva foram expulsos do Éden sem o devido processo legal. Na Modernidade ocorre o mesmo. O “Cogito ergo sum” é o grande erro ou pecado. Eu penso por quê? Quais são as condições que colocam o conhecimento ao meu alcance? Weber apregoa o desencantamento do mundo, ele desconstrói o mito do conhecimento. Os fatos são confrontados com a dúvida. O “cogito” aparece como a nova maldição. A ciência é a maldição da Modernidade. Estamos nos dopando com psicotrópicos epistemológicos, estamos dando respostas antes das perguntas. Os modernos promoveram a linguisticização do mundo. O real, pelo conhecimento, precisa ser transformado em realidade. Nesse panorama, a angústia traz a necessidade do reencantamento. Fala-se que os precedentes devem ser convincentes e persuasivos, entrementes, em que consistem estas qualidades? Em “Dialética do Concreto” – que não fica na seção de engenharia da livraria – Karel Kosik procura debelar o idealismo da filosofia. As palestras prontas, pegando um gancho com o referido autor, são típicas pseudoconcreticidades. Diz-se que o livre convencimento veio superar a prova tarifada. Excepcionou o palestrante: “Ora, eu prefiro a prova tarifada”. A prova tarifada é uma sistemática de apreciação, em que cada uma delas já possui valor específico, vinculando o magistrado da causa a adotar uma baliza somatória, procedendo como matemático que aglutina parcelas. O desafio é este: como se dá a apreciação da prova com a textualidade do direito positivista? Como harmonizá-la com o livre convencimento? Não existe ou não deveria existir prisão automática no Brasil, dada a presunção de inocência. Temos assistido a uma espécie de reação dos órgãos julgadores aos avanços da legislação. O juiz de garantias – apesar de bem-vindo – é um sintoma de que algo não vai bem. O novo Código de Processo Civil – dando uma escapadela da seara penal – era para limitar o poder legiferante do Judiciário, mas surtiu o efeito oposto, aumentou o que deveria fazer decrescer. Jurisconsultos alemães de renome afiançam que o nazismo nasceu e cresceu porque a doutrina ficou silente. Essa constatação induziu Streck a incluir num dicionário de sua autoria a expressão “constrangimento epistemológico”, desde que o verbete sinaliza para a necessidade de referendar o quefazer coletivo e político como verdadeiro atalaia. Na obra de João Guimarães Rosa, “Grandes Sertões: veredas” encontramos o julgamento de Orestes. Em meio ao sertão o acusado tem direito de ouvir a acusação e apresentar sua defesa. No local mais ermo, vemos a ruptura com a barbárie. A letra da música “Boate Azul”, de autoria de Bruno e Marrone, diz assim “Os integrantes da vida noturna se foram dormir”, e, por conseguinte, o boêmio ficou sem ter para onde ir, ficou sem nenhuma companhia, fosse qual fosse ela. Ou seja, se nós, juristas, nos calarmos, quem haverá de falar? Quem haverá de protestar? Batalhemos pelo merecido grau de autonomia do direito. Finalizando sua explanação, Streck alertou: “se o direito é o que os tribunais dizem que ele é, então a minha fala não valeu nada”. Aberto o momento para perguntas, a primeira delas solicitou de Streck doxologia sobre inteligência artificial, e o preletor não teve dúvida e nem rodeios: “é uma picaretagem”. Entregar-se a ChatGPT e congêneres, é jogar 2.500 anos de filosofia no lixo. Em traços largos, foi este o debate. Por todo o exposto, resulta clara a valia das preocupações externadas, e os profissionais ficamos munidos de excelente instrumental teórico a ser manejado em face das antiprincipiologias, que são quase moda, na atividade jurígena da atualidade. Luz!