Incluir, ou promover para remover?
População em Situação de Rua
Por Israel Minikovsky 17 min de leitura
Na Câmara de Vereadores de Joinville tramita o Projeto de Lei n. 217/2024, protocolado pelo Poder Executivo Municipal, em 22 de outubro de 2024. Se aprovada a iniciativa legal, por ela ficará instituída a Política Municipal para a População em Situação de Rua. O anteprojeto procurou alinhar-se com a legislação federal em vigor, tal como a Lei Federal n. 11.343/2006, que estabelece o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), e a Lei Federal n. 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. O projeto é polêmico e audacioso, no mínimo! Quem trabalha com pessoas em situação de vulnerabilidade bem sabe o quanto é desgastante ajudar uma pessoa que não se ajuda. O quanto é estressante e sofrido para os profissionais que acolhem essa demanda. Ademais, do ponto de vista estritamente jurídico, é de alta indagação tomar lado, trate-se da liberdade constitucional de ir, vir e ficar, trate-se da alegada promoção de saúde. Sócrates foi esse sujeito, que entregou aos homens, a máxima que obteve da pitonisa, “conhece-te a ti mesmo”. Após a morte de Sócrates surgiram numerosas escolas socráticas, de vieses divergentes entre si, mas todas elas radicadas no ensinamento do grande mestre. O platonismo foi apenas a mais famosa e bem-sucedida escola socrática. Justo ela que fez uma releitura, uma reformulação da tradição oral, legada pelo intelectual fundador. Outra escola socrática que tomou corpo foi a cínica. O termo “cínico” vem do grego e significa “cão”. Os filósofos cínicos seriam, pois, os filósofos cachorrentos. Eles foram uma espécie de precursores de Rousseau. Eles desprezavam as convenções sociais, excluíam-se da civilização. Não trabalhavam, não estudavam, não construíam casas, muitos andavam nus. Conta-se que, certa vez, alguém comeu um pedaço de carne, e jogou o osso para um destes filósofos, ao que, na sequência, ele cheirou, não gostou, e urinou em cima. Não é um escândalo? Sim, claro que é. Passados tantos séculos, parece que o que nos motiva a consubstanciar em lei uma ingerência na vida das pessoas em situação de rua é esse desconforto, ir para o trabalho, ir para os locais de comércio para efetuar aquisição de utilidades, e ver derrelitos, nas calçadas, seres humanos, em princípio, tão humanos quanto nós. Os defensores da liberdade talvez digam que, uma escolha tão fundamental, em filosofia designada pelo termo “proerese”, deve ficar a encargo do próprio indivíduo. Todavia, a simplicidade desta postura é problemática: a uma, porque o que se está chamando de liberdade é bem limitante, quando a liberdade, por definição, deveria ampliar nosso leque de alternativas existenciais, a duas, porque, consoante lecionou Kant, nossa conduta sempre deverá servir à possibilidade de se tornar em regra universal, o que não se harmoniza com o modus vivendi dos rebaixados ao plano das ruas. Pertencer a uma comunidade é o direito de todo ser humano. Mas essa pertença não é só uma faculdade, é um princípio. Como seres sociais ou gregários que somos, viver à revelia do sistema é negar justamente aquilo que faz com que sejamos nós mesmos, humanos. Não há dúvida de que o fomento do projeto é um sentimento comum de agressão à estética da coletividade. Ninguém se sente bem, transitando por calçadas e outros locais públicos, com corpos humanos largados debaixo de alpendres e outros becos. Esse cenário aponta para uma severa negligência da coletividade e do poder público. Importa salientar que a drogadição é fenômeno generalizado entre as pessoas em situação de rua. Isso significa que, além da dimensão socioassistencial, há a questão de saúde. E a saúde mental comprometida atinge em cheio a dação válida de consentimento. Uma escolha radical de existência deve ter como pressuposto lógico e ético o consentimento livre e esclarecido. Mas qual é a clareza de uma mente embotada por entorpecentes? Qual a liberdade de um alvedrio carcomido pela dependência tóxica? Sócrates ensinou que a razão do homem é sua capacidade de proferir juízos corretos e razoáveis, o que abarca os juízos éticos. Uma grande inteligência lógica, privada de uma conduta consequente, é insuficiente para bem guiar a vida humana. Então, o resgate dos moradores de rua, de Joinville, traz consigo o objetivo de se alcançar a paideia, que é o vocábulo que resume aquele ideal helênico de formação integral, orientada para a mais absoluta totalidade. O amável leitor não coloca fé no que está sendo proposto? A meta é elevada demais? Ora, não foi Sócrates quem disse que, o papel da filosofia é, precisamente, tornar as razões mais fracas nas mais fortes? Luz!