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Intervalo Bíblico

Tênue é o divisor das águas

Por Cleverson Israel 17 min de leitura

Nos últimos dias, veio a se tornar notícia, e debate no seio da sociedade, um fenômeno social novo, o tal “intervalo bíblico”. Trata-se de usar o intervalo escolar para fazer orações, cantar louvores ou ouvir um pregador, que pode vir de fora da instituição. As opiniões a respeito são bastante divergentes. Alega-se que só participa da atividade quem quer, que não há proselitismo. Evidentemente, há controvérsias de caráter constitucional e jurídico de grande monta. O Estado é laico, e a escola pública, também. Não pode haver favorecimento confessional. Pastores e influenciadores são convidados a entrar nestes espaços e ministrar palestras motivacionais, quando, no fundo, o que está em jogo é a expansão do protestantismo. É possível ver jovens chorando, sendo abraçados e se comovendo com as pregações. Passa muito do pedagógico e do didático. Circulam, na internet, muitos vídeos críticos a respeito, de produtores sedizentes ateus, agnósticos, céticos, etc, ou de qualquer livre-pensador, de qualquer franco-atirador. De minha parte, considero-me cristão. E é com você, amável leitor e cristão, que pretendo fazer uma reflexão hoje. Quem é frequentador de uma igreja evangélica é desafiado a ser um missionário. O “fator ovelha saudável” não tem de resultar em cria? Não é assim que se diz? Quem está convicto da própria fé não deve expandir essa verdade e essa experiência espirituais? A Bíblia não é a palavra de Deus? Quem anuncia o evangelho, a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, não o faz da maneira mais bem-intencionada possível? Não no faz por boa-fé? Não somos ensinados que devemos amar a Deus acima de tudo e, ao próximo, como a nós mesmos? Que mal há nisso? Pela teologia do domínio (do mundo) temos a percepção de que somos soldados a derribar as fortalezas de satanás. A vitória de Cristo acaba se confundindo com a nossa própria vitória, nós, que somos seus adoradores. O cristianismo já conta com dois milênios, e a sua história já tem muito a nos ensinar. Se o evangelho é a melhor notícia que pode entrar pelo ouvido de um ser humano, dado que, quem recebe a Cristo e crê em seu nome, tem o poder de se tornar filho de Deus (conferir João 1, 12), pondero que a mensagem do Alcorão também tem a sua beleza, ainda que não haja entre nós grande número de seguidores da religião islâmica. Muitas vezes, as pessoas, no Ocidente, assistem ao conflito israelo-palestiniano, imaginando que o fundamento da discórdia é o Texto Sagrado que orienta essas comunidades, contudo, pondero que, mesmo que a doutrina contida ali fosse outra, a realidade de beligerância seria a mesma. Como intelectual esquerdista, já critiquei, mais de uma vez, o genocídio palestino. E nem tinha como ser diferente. Lado outro, há islâmicos que vivem em Israel sem nenhum problema com os israelenses. Esses referidos muçulmanos não tencionam impor sua identidade intransigentemente, mas optam por conviver pacificamente com o outro. Não fosse o condomínio territorial nacional entre dois povos, de diferentes culturas, Israel seria a maior democracia não só do Oriente Médio, mas de todo o mundo (simbolicamente). O conflito existe, justamente, porque os palestinos não querem ser assimilados. Faz-se questão da diferença. Essa é uma das maiores marcas do Islã: a religião não está só na mesquita, ela está dentro de casa, na rua, na escola, na universidade, no trabalho, no lazer. Enfim, ela está em todos os lugares, em todos os instantes, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Essa perspectiva totalitária e integral, gera, em torno dessa comunidade de asseclas, uma espécie de impermeabilidade. Não ingressa ali o diferente. Quando o mundo evangélico, ou a evangelisfera, se arvora dominar ou assimilar todos os ambientes, produz uma realidade parecida com a vivenciada no Oriente Médio, na Ásia, na África, no leste europeu. Torço, com o maior ardor, para que a salvação de Cristo alcance todos os povos, nações e indivíduos. Entretanto, qualquer hegemonia religiosa, mesmo a cristã, pode ter o efeito de gerar pseudocrentes. Se, eventualmente, no plano social, florescer uma outra tradição religiosa, que venha a seguir os mesmos passos do neopentecostalismo, o Brasil poderá servir de palco para uma disputa de almas e poder, assemelhada à que ocorre na Faixa de Gaza e na Palestina. Deus tem um propósito integral para o ser humano. Essa integralidade, entrementes, pode ser vivida e exercida no foro privado do conforto residencial e familiar. Onde se encontram pessoas de outra profissão de fé, é recomendável que não se lhes imponha algo que sequer conseguem compreender. O ecúmeno ou o espaço público, por definição, é democrático, não podendo haver o sufocamento de alas numericamente minoritárias pelas majoritárias. Respeito pelo pensamento religioso alheio é luz!