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Misérias do Processo Penal

Do contrário, a obra não só não empalideceu pelo transcurso dos anos, mas ainda angariou um prestígio que a robora, guindando-a a um patamar superior. Na sociedade da informação não tem mais esse negócio de deixar “a bronca” no Amapá e mudar-se para o oeste de Santa Catarina. A aldeia, agora, é global.

Por Israel Minikovsky 10 min de leitura

O penalista e processualista italiano Francesco Carnelutti (1879-1965), em 1957, publicou a obra “Misérias do Processo Legal”. No referido trabalho intelectual, o aludido jurista defende que o processo penal tem começo, mas não fim. O processo penal não termina com a sentença, não termina com o cumprimento da pena, não termina com a morte do apenado. Ainda depois de morto será condenado pela sociedade. A memória que se tem do criminoso sempre será negativa, sempre será a de que ele errou. Nas palavras do próprio Carnelutti: “As pessoas creem que o processo penal termina com a condenação, o que não é verdade. As pessoas pensam que a pena termina com a saída do cárcere, o que tampouco é verdade. As pessoas pensam que prisão perpétua é a única pena que se estende por toda a vida: eis uma outra ilusão. Senão sempre, nove em cada dez vezes a pena jamais termina. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, os homens não”. O ex-ator da Rede Globo, Guilherme de Pádua (02/11/1969-06/11/2022), que assassinou Daniella Perez em 28 de dezembro de 1992, ao ser fulminado por infarto no último domingo, veio a óbito e teve sua biografia assim resumida: “ator, assassino e pastor ao fim da vida”. Se para a comunidade que frequentava a Igreja Batista da Lagoinha em Belo Horizonte Guilherme de Pádua era um homem redimido que entregou a vida a Cristo, esta verdade não era comungada pela sociedade brasileira no seu todo. Ocupante do reverendo cargo retromencionado, Guilherme desenvolvia atividade pastoral justamente com detentos, pessoas que tinham problema com a justiça criminal. Se a memória coletiva sempre sinaliza para aspectos menos nobres das figuras públicas, e se o anonimato é uma vantagem quando a pessoa “pisa na bola”, a recíproca inversa é igualmente verdadeira: pessoas de grande projeção midiática padecem a reprovação social em nível exponencial, digno de notação científica, cujo número só pode ser familiar a um astrônomo. O que Carnelutti escreveu era muito verdadeiro para meados do século anterior. Malgrado isto, o texto não entrou em destempo. Do contrário, a obra não só não empalideceu pelo transcurso dos anos, mas ainda angariou um prestígio que a robora, guindando-a a um patamar superior. Na sociedade da informação não tem mais esse negócio de deixar “a bronca” no Amapá e mudar-se para o oeste de Santa Catarina. A aldeia, agora, é global. Se a grande bondade de Deus consiste em dizer ao ser humano que ele pode “andar em novidade de vida”, eu penso que a sociedade dos homens e seu ordenamento jurídico deveria conceder ao reabilitado o “direito ao esquecimento”. O acessório segue o principal. Ora, a reclusão é o cerne da condenação. Sendo assim, expirado o encarceramento, com ele deveria sucumbir a recordação, sobretudo quando ela toma forma de manchete, quando se presta à espetacularização, à busca desenfreada de audiência.