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O grande inventário

Quem leu o título do artigo imagina que escreverei sobre matéria jurídica. Deveras, toda vez que alguém falece, faz-se uma apuração do patrimônio deixado pelo de cujus, bem como de eventuais dívidas ou direitos creditícios de terceiros. Mas o termo “inventário” é bem amplo. Pode-se fazer, por exemplo, um inventário contábil, em que serão analisados […]

Por Israel Minikovsky 14 min de leitura

Quem leu o título do artigo imagina que escreverei sobre matéria jurídica. Deveras, toda vez que alguém falece, faz-se uma apuração do patrimônio deixado pelo de cujus, bem como de eventuais dívidas ou direitos creditícios de terceiros. Mas o termo “inventário” é bem amplo. Pode-se fazer, por exemplo, um inventário contábil, em que serão analisados os livros contábeis e, se necessário, contagem física do estoque. Entretanto, quero usar o termo “inventário” na acepção epistêmica. No Brasil a ciência e os outros saberes são mais ensinados do que desenvolvidos. É claro que a ensinagem, por si mesma, é extremamente importante. Quero propor, todavia, que demos um passo adiante. Lev Vygotsky dizia que a aprendizagem não ocorre nem na zona real e nem na ideal, mas na proximal. E Steve Jobs costumava dizer que o desenvolvedor pioneiro de tecnologias, mais do que ficar detido na perspectiva panorâmica, deve ficar atento ao que ocorre na borda. Pois, então, meus caros. O que proponho é isto: que façamos um inventário do conhecimento. Que apuremos tudo o que foi descoberto, tudo o que é sólido, as ideias e conceitos que resistiram à ação do tempo e da crítica. Na sequência, temos que nos apropriar da discussão de ponta. O que ocupa e preocupa aos cientistas e estudiosos da Europa, da América do Norte e dos tigres asiáticos. O conhecimento é uma estrada bem pavimentada. E, quem pretende ampliar esta malha, deve saber onde se situa a zona limítrofe, onde a camada asfáltica termina. A dependência econômica do nosso país espelha em grande medida esta falta de noção dos contornos da noosfera. Mesmo no campo filosófico, e quem estuda filosofia sabe que esta é uma das primeiras descobertas do matriculado no curso, impensável meditar no suspenso, o bom filósofo é o bom continuador. Alguém que sabe trabalhar dentro dessa dubiedade, de continuidade e ruptura simultânea. É curioso que, quando ocorre o passamento de um ascendente, cônjuge ou outro familiar, as pessoas apressam-se em dar início ao tal inventário, sendo que, até o presente momento, não encontrei um compatriota que tenha se levantado para fazer o inventário que designei de “epistêmico”. Como silogizava Lúcio Aneo Sêneca, “nenhum vento é favorável a quem não sabe para onde pretende ir”. Como dispor em ordem o mundo das coisas, se o mundo do pensamento está tumultuado? O progresso é irrealizável quando se passa ao largo de uma postura e de um padrão de pensamento lógico e consequente. Modo este, de conceber as coisas, respaldado pelo fato de não ter começado a história do mundo no dia de hoje. Se a propriedade de um imóvel pode ser facilmente transferida mediante averbação numa escritura, diferente é o que ocorre com o conhecimento. É trabalhoso assimilar o que nossos predecessores sabiam e teorizavam. Coisa de, no mínimo, milhares de horas de leitura. Se as épocas se sucedem umas às outras, nessa balança pegam carona as mentalidades. Cada tempo tem sua forma de perceber e pensar. Fosse isso pouco, a conjuntura de agora ressignifica o pretérito. Por conseguinte, tudo é representação. Nenhum discurso corresponde perfeitamente às coisas ou aos fatos. Tudo é aproximação, no máximo isso. Em que pese essa relativa nebulosidade, é muito melhor essa imagem fosca, do que nenhuma imagem. Insistindo na analogia com o inventário judicial, ao menos nesta seara, ficam dispensadas as custas judiciais e o imposto de transmissão para a receita estadual. O conhecimento é um patrimônio virtual. Não por nada, que Saint-Exupéry afiançou, “o essencial é invisível aos olhos”. “Os mansos herdarão a terra”, consoante reza as macarianas alíneas, e os filósofos e cientistas herdarão, quero crer, o governo da terra. Toda gestão bem-sucedida é reflexo de conhecimento edificado com critério e seriedade. O inventário de que falo, deve começar imediatamente, pelos e para os vivos! Luz!