O heroísmo que precede o nome
O mundo todo está desalentado com os sismos que abalaram o Oriente Médio, com maior intensidade na Turquia e na Síria. A catástrofe ceifou a vida de mais de quarenta e uma mil pessoas. No meio de toda essa angústia, calamidade e profunda tristeza, sobreveio um episódio tão insólito, que conseguiu se destacar em relação […]
Por Israel Minikovsky 14 min de leitura
O mundo todo está desalentado com os sismos que abalaram o Oriente Médio, com maior intensidade na Turquia e na Síria. A catástrofe ceifou a vida de mais de quarenta e uma mil pessoas. No meio de toda essa angústia, calamidade e profunda tristeza, sobreveio um episódio tão insólito, que conseguiu se destacar em relação ao impiorável homogêneo. No noroeste da Síria, perto da fronteira com a Turquia, uma bebê foi encontrada, nascida sob os escombros e ligada à mãe, já morta, pelo cordão umbilical. Exceto a recém-nascida, toda a família veio a óbito, com o desabamento do prédio de quatro andares. A menininha estava com os membros dormentes por causa da baixa temperatura. No hospital foi colocada em uma encubadora e recebeu vitaminas. Seu peso: 3,175 kg. Com ambos os pais premortos, a órfã padecerá também pela falta de vínculos horizontais, desde que seus irmãos também foram vitimados pela ocorrência. Quem lhe dará um nome? E o afago? E a referência? Não duvido de que a grande inspiração desta menina, um dia, seja ela própria. No caso dela, existir, já é um ato de heroísmo e resistência. Mas não digo que “vem do berço”, porque sua bravura precedeu o leito do hospital, o primeiro em que ela repousou depois do corpo da mãe. Vai demorar um pouco para ela frequentar a escola regular, não obstante, já estivesse inscrita na “escola da vida” antes mesmo de ser parturejada. Para alguns, protagonismo é uma escolha, para outros, é imposição. Deus usa as coisas pequenas deste mundo para confundir as grandes, e usa as loucas, para confundir as sábias. É da natureza do ser humano buscar algumas seguranças para bem viver. Todavia, Deus tem predileção pelo improvável. Quanto mais uma pessoa se afasta da categoria de “favorito”, mais próxima da presença de Deus ela se encontra. Essas circunstâncias são ocasiões para mostrar que família, classe social, cultura, patrimônio, são sim, importantes, mas mais importante do que isso tudo é o favor e a bênção Daquele que está no alto. Não está escrito “a pedra que os construtores rejeitaram se tornou a pedra angular”? Não por mera coincidência, estamos a tratar do ruimento de uma edificação. Por muito tempo, o argumento jurídico usado para legitimar a subalternidade social da mulher, foi de que o homem faria jus a prerrogativas legais por levar consigo maiores responsabilidades. Já a mulher ficaria confinada ao ambiente doméstico, sendo menos demandada em afazeres difíceis ou pesarosos, além de isentar-se de uma série de riscos. Entretanto, excetuando a providência divina, que segurança a recém-nascida, a quem estamos a nos reportar, fruiu, senão o acaso e a fortuna? O interessante da filosofia é isto: sua universalidade. Inteirar-se dessa história, e ler “O Ser e o Tempo” de Martin Heidegger, tem outro significado, bem diverso de simplesmente conceber o referido tratado de metafísica como um mero compêndio acadêmico. Recordando que o Dasein, em português, é o “ser-aí”, o ser jogado, lançado no mundo. O ser humano tem a peculiaridade de ser o único ser com linguagem, coisa alheia aos demais seres. Nós somos, por isso mesmo, entes que se revelam pela comunicação. E nesse processo comunicativo, um dos primeiros passos é a autoapresentação, a partir do que entabularemos o diálogo. A nossa pequenina síria sequer nome ainda tem. Sem embargo, comunicou sua primeira mensagem ao mundo: eu sou, eu existo, vocês não podem fingir não saber de nada. Ainda recuperando uma reflexão do aludido filósofo alemão, autenticidade tem tudo a ver com responsabilidade. Não nos esquivemos. Desconheço os planos de Deus para a infante. Certo mesmo, com efeito, é que a maior responsabilidade de uma geração é preparar a geração seguinte para a vida. Minha princesa inominada, eu a chamo, por ora, de Esther, isto é, estrela, afinal, você veio para brilhar, você é luz!