O Último dos…?
Quem se lembra de ter ido a uma locadora, na década de noventa, e colocar debaixo do braço uma fita de programação em vídeo, com a produção cinematográfica “O Último dos Moicanos”? O referido cinematógrafo foi inspirado em fatos reais e, por tentar ser o reflexo fiel de um complexo enredo, deixo de recontar a […]
Por Israel Minikovsky 14 min de leitura
Quem se lembra de ter ido a uma locadora, na década de noventa, e colocar debaixo do braço uma fita de programação em vídeo, com a produção cinematográfica “O Último dos Moicanos”? O referido cinematógrafo foi inspirado em fatos reais e, por tentar ser o reflexo fiel de um complexo enredo, deixo de recontar a sequência dos episódios. De toda forma, digo ao amável leitor que o palco em que as ocorrências se deram foi no Canadá, na época da colonização. Preso dentro de uma situação conflituosa que envolvia ingleses, franceses e indígenas, o guerreiro nativo, em dado momento, se dá conta de que ele mesmo, enquanto indivíduo, era o único remanescente de seu próprio povo. Enfim, ele se tornou “o último dos moicanos”. Apesar de ter sido produzido em 1992, até hoje este trabalho nos põe a pensar. Se aqui no Brasil nós não temos um estúdio de cinema que se equipare a Hollywood, infelizmente acabamos de nos deparar, cá nos trópicos, com situação idêntica ao hiperbóreo moicano. No dia 27 de agosto de 2022 faleceu o índio Tanaru. Ele fora o único que sobrara de uma etnia, cujo nome se desconhece, dizimada há 30 anos. Nos últimos 26 anos ele viveu absolutamente solitário. Ele costumava construir cabanas em um estilo todo próprio, e que no seu interior tinha um buraco no centro (calculo eu, para drenar a água do solo, quando chovia). A FUNAI o monitorava de longe. Toda vez que ele era encontrado, partia dali e construía outra cabana em outro lugar. Ele foi encontrado morto deitado em sua rede, sem sinais de violência física. Ele levava consigo alguns objetos também. Confeccionados do modo específico da sua cultura étnica peculiar. Para situar o amável leitor, o local de moradia do indígena em apreço era o Município de Vilhena, do Estado de Rondônia. Tanaru era falante de um idioma sui generis. Assim como não chegamos a conhecer o nome da etnia, tampouco descobrimos o viés deste idioma. Não foram efetuados registros linguísticos, nem por escrito e nem por gravações de áudio. Esta história é mais comovente do que Ao Juiz dos Ausentes, de Harry Laus. Com a morte de Tanaru não morreu apenas um indivíduo, mas todo um povo, uma civilização. O planeta Terra ficou culturalmente mais pobre. Tanaru é a prova morta de que a violência do descobrimento e da tomada de posse da terra e de seus bens continua matando os povos tradicionais. Não por coincidência que simbolicamente uma nação indígena deixa de existir neste momento, em que o mandatário do Executivo Federal, mensura estas pessoas em “arroba”. Digo “simbolicamente” porque, na prática, um povo que só conta com um único representante, já se acha aniquilado. Sim, os indígenas são seres sociais e sociáveis como nós, os “civilizados”. Fico a imaginar o desconforto de um antropólogo ao ler uma notícia como estas. Não deve ser fácil estar na condição de um cientista que vê perder o objeto empírico alvo do seu estudo e da sua atenção epistemológica. É caso indiscutível de genocídio e de epistemicídio. Na ocasião em que rememoramos os duzentos anos de nossa independência política, percebemos que protagonizamos três magnos eventos históricos: o descobrimento, a independência e a abolição da escravatura. Todavia, a (resumida) biografia de Tanaru expõe uma ferida do nosso processo histórico. Como humanidade, perdemos um pedaço de nós mesmos. O capitalismo global demonstra não se compatibilizar com a diversidade. Ela que é uma das características mais marcantes do ser humano. Os europeus montaram a União Europeia porque se deram conta disso: ou a igualdade de garantias e critérios na sua isonomia e imparcialidade se coadunam com a diversidade dos povos em seus aspectos linguísticos, religiosos, culturais, consuetudinários, etc., ou aquilo que se convencionou chamar de “civilização” ruirá impiedosamente. A barba do vizinho pegou fogo: vamos colocar a nossa de molho? Luz!