O uso das palavras, essa vara de condão
A palavra lançada, qual sagita voadora, não volta mais
Por Cleverson Israel 18 min de leitura
No dia 27 de fevereiro de 2025, Resolução da Agência Nacional de Deficiência argentina foi publicizada, chocando pais, amigos e profissionais, que convivem com pessoas com deficiência. O documento traz, no seu conteúdo, termos como “idiota”, “retardado”, “imbecil” e “débil mental”. Esses jargões são estigmatizantes, e caíram em desuso há, pelo menos, cinquenta anos. O avanço de um povo ou coletividade se faz notar pelo avanço da linguagem. Mentalidades novas exigem novos modos de expressar-se, uma comunicação mais eficiente e assertiva. Não há esclarecimento pensamental fazendo uso de palavras e construções de linguagem inadequadas. O Brasil está avançando. Nem que à custa de cópia e apropriação de conceitos e teorias importados. Quem não se lembra do antigo CGC (Cadastro Geral de Contribuintes)? Há tempos e tempos usamos CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica. Com o fortalecimento do terceiro setor, que é imune ou isento, conforme o caso, surgiu a conveniência de o governo controlar essas pessoas jurídicas, independente de serem, ou não, contribuintes. A sigla FATMA, Fundação de Amparo à Tecnologia e ao Meio Ambiente, continua sendo empregada, embora, agora, seja lida, simplesmente, como Fundação de Meio Ambiente. Quando o que se tem em mira é o direito à saúde, a jurisprudência tem deixado de lado expressões como “erro médico” para empregar “evento adverso evitável”. Essa expressão, mais nova, abarca melhor os imprevistos que podem ocorrer, por exemplo, numa cirurgia, não necessariamente por ser um “erro”. Na seara previdenciária, deixou-se para trás “aposentadoria por invalidez” colocando em seu lugar “aposentadoria por incapacidade permanente”. Uma pessoa, definitivamente impedida de trabalhar, continua tendo o seu valor, pois a vida humana não se resume a trabalho. Em se tratando de direito dos animais, deixamos de ser o “dono” de um cão, para nos tornarmos seu “tutor”. Ser dono se refere a uma relação de propriedade. Então, o animal seria como um objeto, e seu dono poderia dispor dele como bem quisesse, ignorando aspectos como sofrimento animal ou a valia da vida desta criatura. Já o termo “tutor” remete à ideia de tutela, em que o ser humano seria responsável, devendo zelar pelo bem-estar do animal. As palavras não servem, apenas, para atribuir sentido, como o vocábulo “computador” seleciona de um universo de itens uma ferramenta determinada, diferindo de “mortadela”, ingrediente do fristique das dez, correlacionando ícones linguísticos a elementos de realidade. Elas, as palavras, também servem para atribuir valor. E esse valor pode ser positivo ou negativo, pois todo o léxico é axiológico. Palavras não são moralmente neutras. A redação do decreto administrativo é preconceituosa, e, sem margem para dúvidas, assinala a intenção de diminuir as pessoas que restam compreendidas pela aludida Resolução. O padrão linguístico determina o padrão de relacionamento entre as partes envolvidas. Não se verifica (na linguagem atualizada) perda de objetividade ou dificuldade de identificar o alvo para que é orientada a atenção do destinatário da norma administrativa. A terminologia obsoleta tinha isto como resultado: o engavetamento de seres humanos. A atualização da terminologia visa a alcançar o oposto, a integração social. Mulher que vai à maternidade dar à luz não é “Dona Maria” e nem “minha filha”. Professora de Educação Infantil não é “tia”. Pragmaticamente, não há uma linha bem definida separando conceitos de pronomes de tratamento. Razão pela qual todo o cuidado é pouco, devendo-se evitar as expressões de insólita aparição no documento oficial argentino. A ressuscitação de terminologia antiquada reflete bem o espírito político destes dias, marcados pelo retrocesso. Aos que encontram dificuldade em entender da razão porque uns termos devem ser substituídos por outros, no decurso do tempo, esclareço que toda área de atividade humana é compreendida por uma disciplina ou ciência. E todo conhecimento científico é provisório. Um termo científico será usado até o instante em que se tornar inservível e for substituído por outro, melhor, mais adequado, mais avançado, mais explicativo. Cientificidade e profissionalismo andam juntos. As categorias empregadas na Resolução em comento evidenciam amadorismo. Aliás, esse amadorismo tem se verificado em todas as áreas da política argentina, e não só na saúde. PIB encolhido, economia arrefecida, ausência de cobertura de políticas socioassistenciais, desemprego, falta de expectativa, e, agora, descalabro terminológico tarimbando pessoas vulneráveis que mereciam atenção especializada do Estado. Pobres australorrepúblicas que empoderam esses desgovernantes. Prestemos atenção ao que os políticos fazem com as minorias, será isto, exatamente, o que farão com a maioria. Não precisamos ser gênios da psicologia para ler mensagens subliminares em nossos governantes. O seu despudor acha-se expresso em letras garrafais.