Paris e Rio de Janeiro
A questão é esta: como foi derrubada a primeira árvore, se o cabo do machado é de madeira? Esta provocativa pergunta, que abre este artigo, pretende introduzir o amável leitor a um assunto político. Na última semana de junho de 2023, a mídia do mundo todo transmitiu os protestos ocorridos em toda França, com ênfase […]
Por Israel Minikovsky 16 min de leitura
A questão é esta: como foi derrubada a primeira árvore, se o cabo do machado é de madeira? Esta provocativa pergunta, que abre este artigo, pretende introduzir o amável leitor a um assunto político. Na última semana de junho de 2023, a mídia do mundo todo transmitiu os protestos ocorridos em toda França, com ênfase na capital, Paris. Parisienses, e franceses em geral, se levantaram contra a arbitrariedade do exercício do poder estatal, consistente em violência policial que ceifou a vida de um adolescente. Como um cidadão brasileiro interpreta estes fenômenos sociais, que se passam num país da Europa Ocidental? Os franceses dizem de si mesmos serem cidadãos do mundo, por isso, estão cônscios da responsabilidade que trazem consigo. No Rio de Janeiro, por exemplo, é banal que adolescentes da periferia sejam mortos em abordagens policiais. E nos tornamos indiferentes e indolores diante de tudo isto. A violência já participa do cotidiano. Claro, o mesmo poderia ser dito em relação a Salvador, São Paulo, outras capitais. O mesmo poderia ser dito, acrescento, em relação aos Estados do Nordeste. Tomando-se o Brasil como um todo, e comparando-o à França, percebemos esta rotundidade: no Brasil toleramos o intolerável – a violência policial contra adolescentes e jovens – porque não temos tradição democrática, e na França a sociedade se rebela contra estas excepcionalidades, porque tem o hábito de cultivar a democracia. Dito em outras palavras: não temos porque não temos, e os franceses têm porque têm. Os franceses já deram muitas lições ao mundo, e continuam dando. Isto porque, não tenho dúvida de que um Estado democrático precisa ser estruturado e forte, ao mesmo tempo em que o cidadão não hesita travar confronto com este mesmo Estado, quando se verificam desvios principiológicos. As forças de segurança de um país devem, como sugere o nome, ofertar segurança à população, independente de condição social ou faixa etária, e não risco. Toda vez que os mecanismos internos de autorregulação do Estado falham, é hora de o povo ir às ruas, lembrando as autoridades de que toda poder emana do povo, que toda vez que o poder prejudica o interesse comum ele perde a legitimidade. As forças de segurança de um país não podem tomar espírito de grupo ou gangue, não podem ficar refém do sentimento de revanchismo. O Estado tem o dever de ser ético e racional. Aliás, uma das grandes contribuições da Revolução Francesa, foi mostrar que o poder precisa tomar forma de abstração, ele deve ser um princípio, um conceito, e não uma pessoa em carne e osso. O Estado, e todo o direito que dele emana, precisa ser uma ideia, uma teoria. E em busca desse ideal deverão estar encetadas todas as moções. Que a luta dos franceses venha a ser a luta de todos nós. O pacto social precisa ser refeito. Todos temos a incumbência de afiançarmos as garantias jurídicas mínimas. Nosso norte é a isonomia, a justiça, a racionalidade, a proporcionalidade dos meios. Temos de agir por dever, por necessidade, nunca por impulso ou emoção. O Estado não tem inimigos, ele tem problemas a serem resolvidos ou administrados. A violência, além de nada resolver, é um problema em si mesma, mais uma demanda para o Estado. Como em toda outra política, também na política de segurança pública nenhuma estratégia alcançará o sucesso, sem a participação da comunidade. As manifestações dos últimos dias mostram bem aquilo que os franceses não querem. A intervenção do Estado precisa ser sempre qualificada. Repressão ou ostensividade nada resolvem, apenas empurram o problema para outro lugar, ou reprimem a demanda, até que o cidadão encontre uma porta aberta em outro ponto da rede de proteção. A vida é o bem jurídico supremo, a ser resguardado por qualquer Constituição, sem o que, o direito como instância diretiva e normativa se esvai como brisa levada pelo vento. A fatia de poder delegada por cada indivíduo, no pacto social, ao delegado Estado, teve como motivação primária abolir a guerra de todos contra todos, justamente ela que punha em risco nossa existência. Os franceses assumiram o papel de atalaias, para que não se perca de vista a razão e a ordem das motivações. Que a comoção política e social da cidade-luz nos desperte, a nós brasileiros, de nossa letargia democrática e civilizacional. Luz!