Praia: um bem de todos
Tramita no Senado a PEC 3/2022, o que, neste momento, maio de 2024, vem a público pela propagação midiática. Ela trata da propriedade de terrenos de marinha. No Brasil, as praias pertencem à União, e são administradas pela Marinha. Um projeto de lei, cujo relator vem a ser o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), recebeu parecer […]
Por Israel Minikovsky 15 min de leitura
Tramita no Senado a PEC 3/2022, o que, neste momento, maio de 2024, vem a público pela propagação midiática. Ela trata da propriedade de terrenos de marinha. No Brasil, as praias pertencem à União, e são administradas pela Marinha. Um projeto de lei, cujo relator vem a ser o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), recebeu parecer favorável à proposta. De acordo com a iniciativa legal, as praias poderão integrar a propriedade de Estados, Municípios e, inclusive, poderão integrar domínios privados. A crítica que se faz é que a lógica dos domínios privados é o entretenimento ou similares, e não os cuidados ecológicos que são de se dispensar para manutenção de ecossistemas e evitação de erosões ou outros processos de degradação. Aqui em Santa Catarina, mais de uma vez, o Ministério Público Federal ingressou com ações demolitórias para pôr abaixo moradias milionárias, por terem invadido os limites da legislação ambiental. Por conseguinte, a novel legislação vem socorrer esses proprietários, legalizando a situação destas edificações. A privatização massiva dos espaços litorâneos trará consequências práticas como o estreitamento das possibilidades de uso balneário, aumentando a precificação, sobrecarregando os espaços livres de ônus pecuniários. É uma exaltação ao capital. O que até o presente momento é público, de uso comum do povo, passará a ser elitizado. O argumento de que a medida fomentará o turismo e o lazer escamoteia que uns poucos, e somente eles, poderão acessar estes espaços. Porque alguém faria, por exemplo, um investimento milionário em conservação? Como que o “mercado” poderia recompensar tal investimento? Se “a praça é do povo como o céu é do condor”, como proclama o poeta, a quem pertence a praia? A praia, por analogia, também não seria “do povo como o oceano é dos peixes”? Não bastassem hotéis caros, restaurantes caros, rotativos caros, agora, até para pisar a areia, a tarifa será salgada, como salobra é a maresia. A privatização desses terrenos é uma afronta ao direito constitucional de ir, vir e ficar. Não é só uma questão de lazer. Trata-se de poder transitar. A proposta de alteração da lei e da própria Constituição é um aval à exploração imobiliária e aos processos de gentrificação e de impacto ambiental. A ideia de promoção e desenvolvimento econômico em todas as suas formas, desde que feito de modo ético e lícito, merece laudabilidade. Não estou a insurgir-me contra isto. O que defendo é o direito fundamental de todo ser humano, independente de sua condição econômica, poder apreciar o nascer e o pôr do sol, pisar a areia quente, molhar o pé na água do mar, poder mirar a linha do horizonte, onde céu e mar se tocam. Mais que uma prerrogativa jurídica, é um bem espiritual. É o privilégio de o ser humano, imagem e semelhança de Deus, poder apreciar a Criação, expressão da perfeição do Criador. Pagar para ter acesso a uma praia, é como pagar pelo oxigênio que se respira. Esperamos que este projeto, seja ele aprovado ou rejeitado, venha a ser muito debatido, até porque o Brasil é um dos países que possui uma das mais extensas orlas marítimas. Incumbir os municípios pela administração destas áreas poderá ter o efeito positivo de aproximar o problema do seu resolutor. É da natureza do ser humano cuidar com maior zelo daquilo que é seu, preterindo o que é de terceiros. O momento é oportuno para que o legislador reflita sobre o que pode ser feito em matéria de pesquisas científicas, seja em termos de estudos geológicos, ecológicos, oceanográficos, meteorológicos, dentre outros. O cataclismo gaúcho, no mínimo, deveria provocar uma mudança em nossos comportamentos e atitudes, no sentido de colocar no alto de qualquer pauta, a questão ecológica e climática, admitido o nexo entre ingerência antrópica sobre o meio e a subsequência dos respectivos consectários. É fundamental que nos esquivemos do “entreguismo”, pois não é coerente fazer concessões à propriedade privada e, aquando da superveniência de desastres ambientais, ter o Estado que desembolsar do erário, para reparar má gestão daquele que obteve vantagens da aquisição do espaço. Enfim, não pode haver ônus sem bônus, e nem bônus sem ônus. Simples, mas verdadeiro!