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Quando o bonito fica feio

No dia 24 de setembro de 2024, a BBC News, de Mumbai, veiculou notícia dando conta de que uma jovem de 26 anos, seja ela, Anna Sebastian Perayil, morreu devido a “carga de trabalho extenuante”. Não bastante a tragédia, ninguém da empresa foi ao funeral. Difícil mesmo, é acreditar que a ocorrência tenha como palco […]

Por Israel Minikovsky 18 min de leitura

No dia 24 de setembro de 2024, a BBC News, de Mumbai, veiculou notícia dando conta de que uma jovem de 26 anos, seja ela, Anna Sebastian Perayil, morreu devido a “carga de trabalho extenuante”. Não bastante a tragédia, ninguém da empresa foi ao funeral. Difícil mesmo, é acreditar que a ocorrência tenha como palco temporal o século XXI. A vítima era uma recém-contratada. Ela permaneceu céleres quatro meses no cargo de contabilista da SR Batliboi, empresa membro da Ernst & Young (EY), multinacional, do ramo de auditoria, na Índia. A lamentável notícia encontra percussão no discurso de outros colaboradores, que integram os quadros da mesma empresa. Eles relatam que trabalham por 16 horas na alta demanda, e 12 horas na baixa temporada, sem final de semana ou feriado. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) robora que 51% da mão de obra indiana trabalha mais de 49 horas por semana. Se existe algo que tem o poder de transformar a existência do ser humano em algo belo, este é, sem dúvida, o trabalho. Lado outro, existe o provérbio popular que ensina que, a diferença entre o remédio e o veneno, é a quantidade. Se você for ler O Capital de Karl Marx, verá que ali, no Livro 1, ele relata o caso de uma moça que trabalhava na fiação, e morreu por excesso de trabalho. Algo parecido é relatado por Friedrich Engels, em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Hoje, não totalmente sem razão, muitos professores da área de humanas ponderam que, o socialismo científico, deve ser lido e compreendido à luz do contexto da época. Sim, é verdade. Os escritos marxianos e engelsianos fazem todo o sentido na Europa do século XIX. A historicidade é fator-chave na compreensão das razões dos modos de pensar. Hegel, Marx, Engels, e tantos outros, concordam com essa tese. No entanto, para além da transitoriedade das ideias, encontramos algo de permanente nos clássicos. O que era para estar no museu dos fatos, escancara-se ante nossos olhos. Pessoas estão morrendo de tanto trabalhar! O capital tira os escritórios de empresas multinacionais dos países de centro e os transfere para a periferia, não só porque os salários ali são menores, mas também porque a legislação é menos rígida. Um garçom recebe menos na Índia do que em Londres, porque a produtividade da indústria londrina é superior àquela verificada no parque fabril indiano, marcado por tecnologia inferior e menos produtiva, viabilizando pagamento de salários mais altos no centro. Apesar de um setor não produtivo, como o de serviços, caso do nosso garçom, não ter esse referencial, também aqui paga-se melhor, para evitar a fuga do garçom para o meio fabril. Dito de outro modo, a média do setor produtivo faz a média do setor improdutivo. A Europa culta e civilizada, integrada por países bem organizados, verdadeira vitrina do capitalismo, vende para o mundo a ideia de que seu modelo econômico é funcional e socialmente justo. O que não se diz, é que suas cidades que mais parecem um presépio, do que qualquer outra coisa, calca-se na incivilidade que ninguém vê, a mais brutal e desumana exploração nas periferias do mundo. Até concordo que os países em desenvolvimento devem fazer um esforço maior do que aquelas sociedades, cujo passado consigna um ápice na exploração da própria mão de obra, etapa necessária para o estabelecimento de uma infraestrutura mínima e a formação de capital de investimento. Entretanto, esse mesmo autor que vos escreve, que tolera um esforço lógico e necessário numa via, por outra, defende parâmetros mínimos de proteção à pessoa do trabalhador. Não é preciso matar o trabalhador para lucrar. Não é necessário destruir a saúde do trabalhador para o seu negócio prosperar. Além de ser uma barbárie operar nesse modo de exploração da força de trabalho, tais práticas se mostram erros crassos de administração. É não apenas possível, mas bem provável, respeitar os ciclos biológicos e psicológicos dos colaboradores, convertendo a observância dessas diretrizes em proveito para o empregador. Que a valiosa vida perdida desta trabalhadora se preste a um despertar na Índia e em todo o mundo, no sentido de se criarem eficientes mecanismos de resguardo dos recursos humanos. A economia existe para os seres humanos, e não o inverso disso. A duração total da jornada de trabalho, e a intensidade de trabalho dentro da jornada legal, precisam ser regulamentadas, e devidamente fiscalizadas. O proletariado mundial de hoje, mais do que na Europa, acha-se na Ásia e na África. Mais do que nunca, temos os meios tecnológicos pelos quais nós, esquerdistas, podemos pôr em marcha uma ação orquestrada, em nível global. É uma questão de nos articularmos e fazermos. Precisamos tirar a bunda da cadeira e sair de nossos gabinetes por meio dos quais sonhamos resolver tudo por e-mails e mensagens de voz. Luz!