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Quase primavera!

Hoje são 06 de setembro de 1822, e aos 07 de setembro, amanhã, me casarei – assim pensava iaiá Joaquina. O amado noivo não lhe saía da cabeça. Tão jovem, tão vigoroso, tão belo. Alceu, agora um bom rapaz, dentro de poucas horas, “seu” Alceu, marido de “sinhá” Joaquina. Ela, possuidora de pronunciada beleza, secundando […]

Por Israel Minikovsky 14 min de leitura

Hoje são 06 de setembro de 1822, e aos 07 de setembro, amanhã, me casarei – assim pensava iaiá Joaquina. O amado noivo não lhe saía da cabeça. Tão jovem, tão vigoroso, tão belo. Alceu, agora um bom rapaz, dentro de poucas horas, “seu” Alceu, marido de “sinhá” Joaquina. Ela, possuidora de pronunciada beleza, secundando as expectativas patrimoniais hereditárias, que não eram poucas. Cultivadora das letras francesas, intérprete de desafiadoras partituras em seu piano de cauda, e zelosa pelas regras de etiqueta, Joaquina não considerava desimportante sua união conjugal. Entrementes, a angústia tópica de sua alma não estava relacionada com a veiga dos afetos, e sim com o murmúrio dos porões de uma sociedade, calcada na exploração. Os clássicos, que pegavam carona nos cruzeiros do Atlântico, aportavam em suas mãos, cativando intelectos cis. O dela mesma e o de suas fieis amigas. O ideal iluminista de liberdade de pensamento e de expressão, de trabalho livre, de livre-iniciativa, de igualdade e justiça social, a deixava esperançosa e apreensiva. Devota e pia, reconhecia a Jesus Cristo não só – o que não é algo de somenos – como Senhor e Salvador, senão além, como o Redentor da humanidade. E nessa convicção, punha em atividade seus pensamentos e sentimentos. Acolhia os ideais abolicionistas, e, com eles, as ações panfletárias de socialistas e anarquistas. Lado outro, quiçá, seria melhor postergar as preocupações desta natureza, considerando-se que, desde que o mundo é mundo, sempre tivemos pobres entre nós. As fissuras do sistema social, em que pese seu arraigamento ao longo das muitas calendas, gostam de bater à porta no momento presente. E Joaquina furtava-se a si mesma do presente, quer pela ansiedade de uma vida nova e feliz, no futuro, quer pela nostalgia daquilo que ela ainda não pôde encerrar, o instante atual que logo mais seria pretérito. Joaquina sairia do pátrio poder do seu genitor, e passaria a ficar sob incumbência do poder marital, aquele, mais autoridade do que alteridade, este, em tese, um homem apaixonado. Não foi por nada que Platão escreveu em A República que “o que está escrito em pequenas letras no indivíduo, está escrito em letras garrafais no Estado”. Joaquina reputava, a via do matrimônio, a senda para a felicidade e para a independência pessoal. E o que é o desiderato do indivíduo nas relações privadas, assim também no é, nas relações civis, políticas. Como haveria Joaquina, de saber, que a véspera de suas núpcias seria, outrossim, a véspera da independência de sua pátria? Seria ela forte o bastante para aguentar tanta alegria? Como era natural, a expectativa era grande. Se existe algum tipo de sentimento que seja belo no ser humano, este é o de empatia. Pois, do ponto de vista estritamente racional, é de difícil compreensão enumerar as razões pelas quais uma donzela de boa condição iria incomodar-se com as desventuras alheias. Sobretudo numa época em que a vida era mais simples, pacata e previsível. A vida das pessoas já estava mais ou menos traçada, do altar ao túmulo, quando não, do berço ao túmulo. Porém, se todos temos uma parcela de responsabilidade pelos problemas do mundo, ninguém, por mais poderoso que seja, consegue fazer do mundo um novo Éden. Sendo assim, Joaquina colocou a cabeça no travesseiro, tentou dormir. Empós muita relutância, entrou em estado sofrônico, logo na sequência, adormeceu. A noite passou num sopro. Joaquina despertou, percebendo que, em verdade, não era 07 de setembro de 1822, mas 07 de setembro de 2023. Ligou seu celular, visualizou uma “live”, em que eram exibidas dezenas de milhares de bandeiras alvirrubras, ostentadas pelos filhos de uma mãe gentil, por todos aqueles que tinham um pouco de cara de nativos e candangos, uma gente que litigava pela própria independência, e pela independência dessa plaga garrida, Brasil!