Se Eu fosse secretário de Educação – parte 2: capital humano e capital social
Walter Marcos Knaesel Birkner sociólogo Há 14 dias, escrevi nesta coluna sobre o primeiro problema que enfrentaria se fosse secretário da Educação: a saúde mental dos professores. O segundo desafio que enfrentaria está implicitamente cravado na Base Nacional Comum Curricular – BNCC, como também está no Currículo Base do Território Catarinense, respaldado desde 1996 pela […]
Por O Brasil como nos parece 26 min de leitura
Walter Marcos Knaesel Birkner
sociólogo
Há 14 dias, escrevi nesta coluna sobre o primeiro problema que enfrentaria se fosse secretário da Educação: a saúde mental dos professores. O segundo desafio que enfrentaria está implicitamente cravado na Base Nacional Comum Curricular – BNCC, como também está no Currículo Base do Território Catarinense, respaldado desde 1996 pela LDB: foco na formação para o trabalho (capital humano) e para a cidadania-civismo (capital social). Se isso parece óbvio e em curso desde sempre, então, qual é a trava da engrenagem e como destravá-la?
O foco nesses dois objetivos gerais da Educação brasileira representa um desafio internacional – é só verificar as proposições gerais da Unesco – órgão da OCDE pra Educação, fundada em 1946. Muita gente do meio educacional torce o nariz para as suas recomendações e, em relação à BNCC, essa gente recomendaria a lata do lixo se pudesse. É difícil entender o porquê. Afinal, que objetivo educacional poderia ser mais importante do que formar para o trabalho e para a cidadania? A rigor, nenhum.
Ora, esse duplo compromisso é o objetivo elementar dos sistemas educacionais das sociedades liberal-democráticas. Ao largo disso, admita-se: impulsionada por esse compromisso, uma concepção teórica adequada e a condução honesta de um processo educacional parecem ser a chave do desenvolvimento. Resumindo: cidades e nações desenvolvidas são o resultado da equação entre capital humano e capital social; de um lado, inteligência e mão de obra qualificada, de outro, cooperação e amor à sua cidade.
Mas há um distúrbio de aprendizagem nessa trajetória e a trava é de ordem ideológica. Pois bem: em relação ao imprescindível propósito de formação para o trabalho, o fato é que sobrevive uma ideia empoeirada, segundo a qual, isso seria uma demanda burguesa e neoliberal. Não faltam educadores a acusar a BNCC de estar a serviço do mercado e dos grandes bancos. Só que por trás dessa visão, há uma montanha de livros didáticos, autores “críticos” e sindicatos, assegurando a hegemonia dessa narrativa anti-liberal.
Essa gente toda deixaria orgulhoso o filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937) e, a contragosto, daria certa razão ao filósofo brasileiro Olavo de Carvalho (1947-2022). Inspirador do neoconservadorismo intelectual brasileiro, Carvalho explicou aos seus pupilos como Gramsci traduziu o conceito marxista de ideologia e o reverteu em favor da revolução “passiva”. O pensador italiano mirava a imprensa, a universidade e a escola, insistindo que “controla a realidade quem controla as palavras”. Acusar a educação para o trabalho de uma “estratégia neoliberal a serviço do grande capital” faz parte desse controle. Dito.
Em relação ao foco na cidadania, então, a contrariedade dos “críticos” da Educação é bem mais intrigante. Ora, a cidadania foi o principal alvo formativo das últimas três décadas na Educação brasileira, uma bandeira de inegável mérito aos seus defensores. Qual seria, então, o problema? Bom: é que a noção de cidadania foi predominantemente orientada para os direitos humanos. Agora, percebida a lacuna dos deveres cívicos, a BNCC passa a sugerir o civismo. E, no Brasil dos “críticos”, o civismo carrega um enganoso ranço contra o militarismo.
E aqui o “engano” é duplo e as aspas necessárias, porque quem retroalimenta o erro nada tem da ingenuidade dos que nele acreditam. Primeiramente, é enganosa a relação que os “críticos” ensinaram a ver entre ordem e progresso com o autoritarismo. No fundo, parte da anomia incontrolável que adoeceu os professores no universo escolar provém dessa lamentável falácia. Subjaz à análise dos “críticos” a noção de que as regras da civilidade e do civismo não passam de estratégia elitista de submissão dos excluídos, algo assim meio freireano.
E a segunda parte do “engano”, esse talvez sem aspas, é desprezar a atualíssima importância contida na ideia do civismo. Dentro desse conceito, estão as duas habilidades mais enfatizadas pela BNCC, como pela Unesco e por pensadores honestos da Educação mundo a fora: são a empatia e a autonomia. Ensinar essas duas habilidades torna-se o principal desafio moral da Educação contemporânea e uma boa indicação bibliográfica é o livro Educação em quatro dimensões, de Fadel, Bialik e Trilling, disponível em:
https://curriculumredesign.org/wp-content/uploads/Educacao-em-quatro-dimensoes-Portuguese.pdf
Empatia, nos responde o chatbot GPT, é “a capacidade de compreender e compartilhar os sentimentos, pensamentos e experiências de outra pessoa. Envolve a capacidade de se colocar mental e emocionalmente no lugar de outra pessoa, compreender sua perspectiva e responder com compaixão e cuidado (…)”. Por sua vez, o conceito de autonomia diz respeito à “capacidade ou liberdade de um indivíduo (…) para tomar decisões independentes e governar-se com base em valores, crenças e desejos pessoais (…)”. Convívio e trabalho moldam o caráter.
Esses dois conceitos são interdependentes na formação do cidadão e não há cidadania sem a assunção dessas duas habilidades. E, do ponto de vista educacional, as duas muito bem se encerram nas noções de capital social e capital humano. Estes conceitos deveriam estar nos conteúdos escolares e curriculares da escola à universidade. Trabalhadas corretamente, elas se harmonizam na melhor concepção teórica e na mais honesta condução possível de um processo educacional, com foco nos conceitos de trabalho e cidadania-civismo.
Se fosse secretário da Educação do meu estado, não perderia tempo, daria prioridade. Repito, empatia e autonomia são conceitos complementares e correspondentes a capital social e capital humano. Por sua vez, entrelaçados, estes conceitos são imperativos teóricos à educação ao trabalho e ao civismo. Só o preconceito de quem controla as palavras é que impede a explicitação disso nos currículos. Não vejo ambiente para um debate nacional sobre isso, mas estadualmente é possível e necessário, saberia eu disso, se secretário fosse.
É preciso destravar o processo educacional e estabelecer um diálogo honesto com docentes e partes interessadas da Sociedade catarinense. Isso envolve ainda as universidades regionais, as classes política e empresarial, a Fundação de Amparo à Pesquisa – FAPESC e voluntarios interessados. Focar no trabalho e no civismo, orientado pelos conceitos de capital humano e capital social, potenciarão exatamente esses dois aspectos, que constituem a essencia antropológica de Santa Catarina e de qualquer sociedade desenvolvida. E desenvolvimento será tema do próximo artigo sobre a Educação.
Sugestão musical:
“Ideologia”
Cazuza
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