Seguranças do Processo Penal
Em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, ficou definido que não se pode desqualificar vítimas de violência sexual, expor detalhes de sua vida íntima, sob pena de, assim não o fazendo, advogados e juízes serem responsabilizados por isso. A mencionada jurisprudência vem ao encontro de um movimento anterior e mais amplo, no sentido de não […]
Por Israel Minikovsky 16 min de leitura
Em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, ficou definido que não se pode desqualificar vítimas de violência sexual, expor detalhes de sua vida íntima, sob pena de, assim não o fazendo, advogados e juízes serem responsabilizados por isso. A mencionada jurisprudência vem ao encontro de um movimento anterior e mais amplo, no sentido de não revitimizar a vítima, sobretudo quando ela se encaixa no perfil de hipossuficiente, por gênero, idade, condições existenciais várias. Note-se que a vítima, como assinala Lenio Streck, faz mais parte do direito penal do que do direito processual penal, desde que este último preconiza a figura do réu, o maior interessado no resultado da ação. É essencial e desejável que o Estado oferte apoio psicológico, físico e moral às vítimas de crimes, quaisquer que sejam, com maior ênfase em crimes contra a liberdade sexual, no entanto, deve-se zelar pela ampla defesa do imputado. O processo penal fundamenta sua razão de existir na moção de todos os instrumentos em prol daquele que colima realizar sua defesa, e na tentativa de lograr provar sua inocência, ou demonstrar ausência de provas suficientes. Todavia, para além das metas do processo penal, e para além das políticas voltadas às pessoas em situação de vulnerabilidade, estamos a tratar de um problema epistemológico. É caso, indubitavelmente, de redução eidética. Francis Bacon bem que nos advertiu dos idola tribus. Existem, no senso comum, certos consensos que padecem de total falta de espeque lógico. Este é o caso, por exemplo, da ideia de que, em havendo conflito de interesses ou formas de pensar entre diferentes gerações, os pais sempre estão com a razão, faltando aos filhos esta faculdade. Ou seja, existem certas presunções de credibilidade. Em vez de serem valorados, apreciados e sopesados os fatos, mensura-se o valor pessoal daqueles que integram os polos do litígio. Em lógica, esse tipo de falácia é classificada pela expressão latina “ad baculum”. Se, entrementes, no passado o autor do delito suprimia a instrução do processo, e já começava vitorioso na ação penal, em razão do que agregava a si em termos de prestígio social, agora caímos no extremo oposto: independente da vida pregressa da vítima, ela é a detentora das presunções abonadoras. O Estado me diz qual defesa não posso usar. Ora, o magistrado pode até não acatar meus argumentos, mas porém, a estratégia defensiva não pode ser achacada por nenhuma espécie de cerceamento. Entendo que o problema não é definir qual informação posso ou não posso usar, e sim, o que fazer com ela. Se a vítima é prostituta, não devo desqualificá-la por isso, o que não me impede de casar esse elemento informativo com as teses de defesa em prol do meu cliente. O que precisa ser banido do direito processual penal é a velha sistemática, não abolida no momento de agora, mas simplesmente invertida, de colocar, como que nos pratos de uma balança, o prestígio e a validação sociais do agressor e da vítima. Dando-se a mão à palmatória àquele que demonstrar a superioridade do próprio peso. Porque essa equação serve para aferir valores morais, quando a meta última do processo penal, e de todo processo, é a verdade. O bem maior, destarte, é epistêmico e não axiológico. A ampla defesa e o contraditório são garantias constitucionais, são diretrizes político-processuais. Na vida do cidadão médio, uma ação penal é algo excepcional. Por conseguinte, é de bom alvitre que o Estado forneça ao cidadão, nesta circunstância atípica, os meios necessários para livrar-se da imposição de inflição. Quem tem acesso aos autos, senão juristas de alto quilate, para além da figura do advogado, como promotores, juízes, defensores públicos, procuradores de justiça, desembargadores, etc, enfim, pessoas acima do relés preconceito do poviléu? Seriam as aludidas pessoas incapazes de sobre-erguer-se em relação a alegações enviesadas? As ponderações aqui elencadas tomam força quando a própria criminologia, e para ser mais específico, Benjamin Mendelsohn, sinaliza que o nível de participação da vítima, na ocorrência que a caracterizou como tal, oscila do mínimo ao máximo, em entretons vários, podendo chegar, inclusive, no extremo de se verificar a culpa exclusiva da vítima. Coincidindo o caso concreto com a última hipótese, ventilada na proposição anterior, é justo condenar o réu, eis que sua defesa sucumbe pelo cerceamento, em nome da não revitimização?