Somos mercadorias?
Quem leu O Capital, de Karl Marx, percebe que o mencionado autor descreve e explica o modo capitalista de produção exatamente como ele funciona. Nesse sistema econômico, a mão de obra, que Marx chama de força de trabalho, é uma mercadoria como qualquer outra. A única grande diferença da mão de obra é que ela […]
Por Israel Minikovsky 16 min de leitura
Quem leu O Capital, de Karl Marx, percebe que o mencionado autor descreve e explica o modo capitalista de produção exatamente como ele funciona. Nesse sistema econômico, a mão de obra, que Marx chama de força de trabalho, é uma mercadoria como qualquer outra. A única grande diferença da mão de obra é que ela é uma mercadoria que possui a capacidade ímpar de produzir um valor maior do que ela própria custa. O trabalhador, para sobreviver, precisa alienar sua capacidade laboral, caracterizando a alienação econômica (que ocorre ao lado da alienação social, política, filosófica, etc). Por que estou escrevendo este texto? Pois bem, Juan Carlos Pagotto, senador argentino por Rioja, do LLA – La Libertad Avanza, propôs alteração do artigo 139 bis do Código Penal de seu país, que prevê pena de 4 a 10 anos para quem entregar filho mediante contrapartida pecuniária. A ideia seria isentar criminalmente os pais que vendem seus filhos em suposta situação de necessidade. O aludido político é apoiador de Javier Milei. De acordo com Dietrich Bonhoeffer, “o teste de moralidade de uma sociedade é o que ela faz com suas crianças”. O Brasil teve a felicidade de ser o pioneiro na legislação de proteção e amparo às garantias de crianças e adolescentes. Inclusive, o Estatuto da Criança e do Adolescente serviu de norte para nossos vizinhos latino-americanos que, na sequência, adotariam diplomas legais semelhantes. A proposta de iniciativa legal vem inquinada de uma imoralidade ímpar. Ela estimula a mercantilização do ser humano. Se aprovado o projeto legislativo, o que se verá será um aumento da exploração sexual de crianças e adolescentes, sobretudo do sexo feminino. Criar-se-á um mercado de órgãos, dado que os transplantes sempre geram filas. Legalizada esta prática hedionda, haverá casais que proverão a própria subsistência “fabricando” crianças. O ignóbil legislador não conhece minimamente o direito universal, para saber que certos bens jurídicos são indisponíveis e inalienáveis. A solução conservadora e neoliberal é sempre esta: tudo tem de ser convertido em produto de mercado, sempre é uma simples questão de comprar e vender. A oferta e a procura são a mão mágica que harmoniza todas as contradições sociais. O que pensar de um governo que cogita vender parte dos seus cidadãos para diminuir a pressão social interna? Se quem comprar a criança for um cidadão estrangeiro, como fiscalizar o que o adquirente faz com o infante após o egresso do território nacional? Quem já ouviu falar de John Bowlby deve conhecer a teoria do apego. Separar, ainda em tenra idade, um ser humano dos seus pais, é um evento traumático e que deixa marcas indeléveis na personalidade. Se o projeto, que agora tramita, vier a vigorar, teremos um retrocesso civilizacional. A escravização de pessoas africanas é uma mancha na história da humanidade não “só” porque esses sujeitos precisaram trabalhar sem remuneração e contra a sua vontade, sofrendo violências múltiplas, físicas, psicológicas, simbólicas, etc., mas senão ainda porque tiveram suas raízes cortadas, e porque foram comercializados como se fossem meras coisas ou objetos. Ora, é exatamente isto o que está sendo proposto. Ao invés de o Estado apoiar quem se encontra em situação de vulnerabilidade social e econômica, ele tem aumentado a exposição à vulnerabilidade e produzido um risco ainda maior. Quantas e quantas vezes nos deparamos com esta história: uma criança, filha de família pobre, nascida em país periférico, é ilegalmente adotada por um casal que reside em país de primeiro mundo, tem conforto material e todos os recursos para ser tornar alguém socialmente importante, mas, em sendo agora adulta, sente a necessidade de conhecer e firmar vínculos com a família biológica, mesmo que esta seja paupérrima e privada de cultura. Esta é a maneira de faraó resolver o “problema” dos hebreus: as parteiras teriam de matar os bebês nascidos do sexo masculino. E Herodes, para não perder o trono, entendeu que a solução passaria por matar todos os bebês recém-nascidos até os dois anos de idade. Enquanto os países desenvolvidos consolidaram o consenso de que a primeira infância é um momento especial, durante o qual o ser humano deve receber tudo de que necessita, sendo prioritários os mil primeiros dias, da concepção aos dois anos de idade, a vizinha Argentina, está indo na contramão, entendendo que o descarte de seres humanos redundará no recuo da demanda socioassistencial em face do erário.