Tom, o terror do chupim (ou seria sabiá?)
Dois anos atrás apareceu, aqui em casa, um gato amarelo. Com um miado comprido, arrastado e manhoso, externava fome e pouca filáucia para consigo mesmo, dando a entender que era recebedor de poucos afagos. Presumimos tudo isso sem falar uma palavra de “gatês”. Minha esposa e meu filho lhe deram o esbelto nome de “Tom”, […]
Por Israel Minikovsky 15 min de leitura
Dois anos atrás apareceu, aqui em casa, um gato amarelo. Com um miado comprido, arrastado e manhoso, externava fome e pouca filáucia para consigo mesmo, dando a entender que era recebedor de poucos afagos. Presumimos tudo isso sem falar uma palavra de “gatês”. Minha esposa e meu filho lhe deram o esbelto nome de “Tom”, como se fosse um ser humano. Assim que o adotamos, uma fina madame acionou as redes sociais, em busca de um felino cuja descrição coincidia com o nosso agregado. Para felicidade do Mateus, não se tratava do mesmo animal. Nunca fui muito fã de gatos. Não sem razão! A pouco li uma matéria, a princípio científica, dando conta de que o gato doméstico vem a ser a espécie que deu cabo do maior número de outras espécies, em virtude do seu caráter eminentemente predador. Na lista de vítimas, estão pássaros, anfíbios, répteis e insetos. Nitidifique-se que, sem um empurrãozinho de outra espécie dominante e sem párea, a do homo sapiens, os bigodudos atléticos e ágeis jamais teriam perpetrado tais proezas. Um animal de estimação demanda tempo, cuidados e recursos financeiros. É vacina, castração, desenverminador, ração, material de higiene, dentre outros. Para uma criança, um animal de estimação é, no fundo, um bichinho de pelúcia com vida. Em estilo de anedota, fala-se “não vale a ração que come”. Desviando a linha da narrativa para recuperá-la mais adiante, sempre que posso, aplico meu tempo aos estudos. Todavia, um pássaro travesso, que não é o pica-pau do desenho animado com sua gargalhada histriônica e irritante, punha-se a bicar o vidro o dia todo. O plumoso bípede passeriforme enxergava um rival na tábula vítrea, sem sequer desconfiar que se tratava da própria imagem refletida. E o persistente ruído comprometia a qualidade da minha atenção, que já não mais podia ser absoluta. Quando eu me levantava para atirar meu chinelo nesse diminuto voador que incomodava mais do que uma avestruz, ele havia batido em retirada. Embora não devore suas presas, Tom tem se mostrado um caçador voraz. Volta-e-meia aparece com um rato ou camundongo na boca. E ele traz para casa estes cadáveres. A propósito, há um provérbio árabe que reza “trate seu cão e ele cuidará de sua casa, não trate seu gato e ele comerá os ratos do seu paiol”. Mal havia eu desasnado com essa máxima da sabedoria popular, avistei o Tom com uma ave jazente entre suas mandíbulas. Não pude precisar a identidade exata da vítima, todavia, nada obstava que aquela pequena animália sem alento, fosse aquele vivente que pugnava à janela contra o progresso dos meus estudos. De uma forma ou de outra, depois deste evento fúnebre, o vidro permanecia silente e inerte. Como alimento uma verdadeira devoção aos estudos filosóficos e teológicos, recebi a novidade como uma dádiva, passando a entender que, por essa e por outras, por fazer a alegria de uma criança, ele pagou a ração que comeu e tudo o que investimos nele. Essas situações que, com toda razão, podem ser designadas como “existenciais”, deveriam sensibilizar nossas consciências para a posse responsável e para o valor cívico do engajamento em ações que velam pelos interesses e direitos dos animais. Sempre nos esmerando na convicção de que o estatuto ôntico de um ser humano é incomparavelmente maior do que aquele que cinge a vida animal. Quem é ornitólogo não deve odiar gatos. Os gatos não pensam, não ponderam, não raciocinam. Gatos simplesmente “funcionam”. Eles podem estar empanturrados de ração e continuarão sacrificando aves e outras formas vitais de pequenas proporções corporais. As leis servem para os seres humanos. Se a matéria se tornou um problema de ordem social e ambiental, compete ao legislador regulamentar o conflito de vontades e valores morais. Uma saída é limitar o número de bichanos que a unidade residencial pode comportar. Talvez não seja a única ideia e nem a melhor, mas é o pontapé dos debates camaristas parlamentares. Nada melhor do que iniciar 2024 com uma discussão jurídica para quem tem a credencial oabesiana. Muita luz para este ano!