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Um crime contra nossa identidade

polícia, munida do respectivo mandado, adentrou ao domicílio do autor do furto

Por Israel Minikovsky 14 min de leitura

No dia 23 de julho (de 2024) os funcionários do museu de Rio Negrinho, Carlos Lampe, ao chegarem, pela manhã, no seu local de trabalho, deram falta de alguns itens do acervo. Para ser bem específico, uma guitarra e um moleton dos Guns N’Roses. O aparente logro do meliante durou pouco, passadas algumas horas a polícia, munida do respectivo mandado, adentrou ao domicílio do autor do furto, e identificou os objetos subtraídos. A matéria jornalística não divulgou os dados do capitulado no fato típico e antijurídico em comento. Caso tenha sido uma pessoa jovem, torço para que lhe sobrevenha uma mentalidade mais ajuizada. Estamos perante não apenas de um crime contra o patrimônio econômico, senão mais grave do que isso, contra um patrimônio que é público, coletivo, histórico, memorialístico e cultural. Os itens que integram o circuito expositivo de um museu não falam apenas sobre si mesmos, eles falam sobre nós, sobre nossos pais e avós, sobre todas as gerações que nos antecederam. Toda relíquia acusa a nossa historicidade, a condição de seres provisórios, o quanto é passageiro o nosso fazer. Existimos para sermos superados por nossos filhos e descendentes. O caso em comento é análogo a outro, quase tão grave quanto o primeiro, o retirar um livro da biblioteca pública, e não efetuar a devolução, justamente porque apreciou tanto seu conteúdo, que decidiu, contra toda moralidade, manter o objeto estimado na prateleira da própria casa. Ora, se algo fala com você, é justamente porque fala com todo ser humano, aquele eu simultaneamente subjetivo e universal, ao gosto da razão pura kantiana. Não é errado fazer a aquisição de instrumentos e geringonças dos tempos idos. Existe lugar certo para isso, o antiquário. E se as mercadorias na vitrina desse estabelecimento exibem preços exorbitantes, essa circunstância só reforça o valor simbólico inerente a estes elementos. No segundo caso aqui mencionado, ainda que somente hipotético, o indivíduo deve dirigir-se a um sebo. A escola, além da família, da sociedade e do Estado, deve ensinar a valia de todas aquelas coisas que extrapolam a valoração meramente econômica. Isso inclui, por exemplo, a diversidade religiosa e o respeito que se deve ter por seus templos, locais de culto, indumentária ou paramentos, alfaias litúrgicas, estátuas e toda espécie de imagens e símbolos. Em se tratando de religião, além dos aspectos já enumerados acima, há a questão do sagrado. Sendo assim, disciplinas como filosofia e sociologia vêm a ser estratégicas na abordagem destes assuntos. Nós temos uma visão um tanto equivocada a respeito de ambas disciplinas nominadas a pouco. A filosofia e a sociologia, podem sim, trazer abordagens construtivas, dado que ora convém relativizar certos dogmas, ora convém realizar o movimento inverso. Dogmática e zetética se complementam. Comumente, museus abrigam arte sacra, até por ser o Brasil um país de forte tradição cristã. Calha, destarte, recuperar a noção de que a filosofia e a teologia não necessariamente devem ser antípoda uma da outra. A filosofia, bem trabalhada, pode ser uma dócil ferramenta a favor da religião. Não cunharam, os escolásticos, a expressão latina “philosophia ancilla theologiae”? Para a maioria das pessoas, uma imagem de Nossa Senhora vale bem mais que uma guitarra e o emblema de uma banda de rock. Mas se os críticos estiverem certos, eles que verbalizam que “rock é música de velho e MPB é música de barzinho”, de alguma maneira os itens que se tornaram res furtiva, deveras, mereciam estar lá por terem pertencido a uma outra época, a um presente que já não existe mais. Que essa triste notícia tenha a serventia de lição para quem ainda permanecia dormente a essas realidades que, no muito das vezes, jazem numa espécie de limbo da sociedade capitalista. Como ensina o Doutor José Kormann, “conhecer o passado, para compreender o presente, e saber agir no futuro”. Memória é luz! Patrimônio histórico é luz!