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VIDA APÓS GAZA

Coluna

Por Gilmar dos Passos 50 min de leitura

Sandro Luiz Bazzanella – Professor de Filosofia

Sandra Eloisa Pisa Bazzanella – Estudante de Filosofia

Refletir sobre a violência contra a vida cometida em GAZA pelo Estado de Israel e seus apoiadores é condição urgente e inadiável. É urgente por se tratar de uma guerra cujo objetivo é o extermínio deliberado de um povo, portanto um genocídio. Isto é, o que ocorreu em Gaza pode ser identificado como genocídio na medida em que um genocídio é, na definição do Dicionário Houaiss: “1 extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso <o g. de judeus na Segunda Guerra Mundial> 2. p.ext. destruição de populações ou povos <uma guerra nuclear resultaria num verdadeiro g.> 3 aniquilamento de grupos humanos, o qual, sem chegar ao assassínio em massa, inclui outras formas de extermínio, como a prevenção de nascimentos, o sequestro sistemático de crianças dentro de um determinado grupo étnico, a submissão a condições insuportáveis de vida etc.”[1] Refletir sobre essa condição é inadiável porque se revelou, no decorrer da guerra e de seus desdobramentos, que Gaza é palco de um experimento militar, político e econômico que está se tornando paradigma de governos mundo afora, em suas estratégias de controle e vigilância sobre indivíduos e sociedades.

Refletir sobre o genocídio na Faixa de Gaza é urgente e inadiável na medida em que a barbárie lá cometida aponta para o fato de que a fragilização da vida em seu valor intrínseco – epitomizada na figura dos genocídios praticados historicamente em vistas à conquista e/ou manutenção do poder político e econômico – continua paradigma dos governos contemporâneos. Somada à deterioração sempre presente da vida humana, as dimensões sociais, políticas, econômicas e ambientais são outros palcos nos quais se manifesta a ameaça à vida humana – e à vida com qualidade.

Assistimos em velocidade acelerada à decomposição do mundo que outrora promovera formas de vida cuja experiência era a de um mundo, em maior ou menor grau, humana e socialmente compartilhado – não se trata de retomar um ideal historicamente inexistente de cooperação mútua entre as sociedades ocidentais, mas sim apontar para um mundo compartilhado na dimensão da política, que por sua vez só podia se realizar no compartilhamento da experiência humana, tal como expressaram o movimento sufragista, Maio de 68, etc… –  Apesar do compartilhamento comum que as redes sociais mimetizam, parece que não há na esfera da vida além dos dispositivos comunicacionais (smartphones, computadores…) mais mundo e vida a serem preservados e compartilhados. Na sociedade individualizada em curso (Zygmunt Bauman) somos todos indivíduos em diuturno frenesi competitivo. Que vença o mais forte. O mais esperto. O mais mentiroso. O mais desonesto. Que vença a indústria mundial de fabricação de armas, de bombas, de tanques, de mísseis. Essa vitória pode ser quantificada pelo número de corpos espalhados nos campos de batalha, ou pelo número de cadáveres esmagados nos escombros de casas, prédios, escolas, hospitais como “assistimos” na Faixa de Gaza. Pode ser quantificado pelo número de pobres que aumenta anualmente em contraste com o aumento da concentração de renda entre as parcelas mais ricas da população mundial. Pode ser quantificado na destruição (e na reivindicação popular pela destruição!) de direitos sociais e de políticas públicas de bem-estar social. Pode ser quantificado na ausência da experiência com o humanamente compartilhado, com o político por excelência, com a elaboração de formas outras de vida em detrimento da admissão da lógica concorrencial aplicada às inúmeras dimensões da experiência humana. Refletir sobre Gaza é preciso, portanto, porque a guerra sob o pretexto da repressão ao terror lá empreendida é a representação de um modo de política exercida a partir dos pressupostos da manutenção e/ou conquista do poder e otimização do lucro, que suspende a dimensão jurídica da garantia de direitos e viola os direitos outrora afirmados como “universais” justificados na humanidade de cada indivíduo.

Se tal condição é símbolo de um modo de fazer política em que a barbárie e a violência destroem as relações de poder, como argumentou Arendt, é necessário refletir, debater publicamente o modo como essa política é exercida hoje. Nos contextos sociais em que as relações de poder foram suplantadas pela violência da guerra; pela violência policial; pela violência da mentira; pela violência dos algoritmos definidores de tendências nas redes sociais; pela violência doméstica; pela violência cotidiana; já não há mais possibilidade de compartilhamento, tampouco construção deliberadamente coletiva, do mundo. Há apenas brutalidade que consome a vida. Desgraçadamente, sob determinados pressupostos, no contexto das sociedades da plena produção, do pleno consumo, da espetacularização individualizante da vida não há mais mundo a ser compartilhado entre seres humanos no presente de suas vidas e, dessa forma, estupidamente se compromete a vida e o mundo das jovens e das futuras gerações.  O genocídio levado a cabo em Gaza é a representação (e efetivação) do modus operandi de governo dos homens e do mundo na atualidade. É, nesse sentido, a expressão pura da violência tornada modo de vida, de governo, de relação com o mundo. Violência admitida enquanto política de gestão, mas também enquanto forma de vida.

Desafortunadamente as evidências indicam que não aprendemos nada, ou aprendemos pouco, com a brutal e indescritível experiência dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. A trajetória histórica recente do Ocidente está repleta da promoção de genocídios. Lembremos aqui do genocídio cometido contra os povos ameríndios no ato de invasão das terras do “novo continente” pelos europeus; do genocídio promovido pela escravidão dos povos africanos ao longo de mais de 300 anos para trabalhar na colônia brasileira: por muito tempo o oceano atlântico foi considerado o maior cemitério a céu aberto do mundo. Atualmente este título cabe ao mar mediterrâneo que acolhe os corpos dos refugiados do continente africano que tentam adentrar na Europa. O obituário vinculado a práticas genocidas ocidentais poderia estender-se por longas páginas. Diante de tamanha violência tudo indica, retomando o argumento, que não aprendemos nada no transcurso histórico de sofrimento humano. A reflexão, o questionamento de Theodor Adorno, proposta ao longo da sua obra e expressa sucintamente na palestra intitulada: “Educação Após Auschwitz”, sobre a possibilidade de educar as futuras gerações diante do horror dos campos promovido pelos nazistas, continua insuportavelmente atual. Mas, cabe-nos ainda intensificar o questionamento de Adorno, refletindo e questionando se é possível na atualidade propor o compartilhamento do mundo, depois de Gaza.

Isso porque a existência de algo como a guerra em Gaza sinaliza que uma vez cometido algo como Auschwitz, com a anuência e legitimação das instâncias políticas de deliberação, qualquer ordenamento jurídico pode, a qualquer momento, ser suspenso em nome de uma campanha “mais urgente”, seja ela o extermínio de “raças inferiores”, seja ela a reação ao terrorismo na forma do extermínio palestino. Daí como a opinião popular, se não pode ser extinta, deve passar a ser aliada, isto é, deve legitimar o estado de violência enquanto modo de governo. Se a aldeia global necessariamente se comunica, reivindica políticas, derruba governos, então se trata de investir no conteúdo dessa manifestação: trata-se de insuflar uma opinião que pelo menos não coloque em risco o projeto de poder governamental. Disso segue a importância dos algoritmos no direcionamento de conteúdos e o suposto “perigo” identificado e alardeado por grupos de interesse na promoção da guerra civil em curso (o caos social) em relação à regulamentação de redes sociais. A questão para estes grupos assim se apresenta: como os discursos de ódio e a violência expressa na linguagem e na propaganda veiculada nas mídias sociais poderão contar com adeptos se os meios de veiculação desses projetos de soberania são regulados?

Refletir sobre Gaza é urgente e inadiável na medida em que nas sociedades contemporâneas em que estamos inseridos e, sobretudo vinculados e acomodados na efemeridade da produção e do consumo de nós mesmos, dos outros, do mundo, o genocídio de Gaza cairá no esquecimento e, por decorrência, na indiferença. Consumidas as informações, as imagens dos bombardeios, dos corpos de crianças, de mulheres e homens estraçalhados nas explosões esvai-se a adrenalina e novas experiências visuais e de consumo são exigidas pelos espectadores. E daí, dane-se o mundo! Estou pagando a assinatura do canal para obter fortes emoções que ainda me façam sentir vivo! Guy Debord em sua obra publicada em 1967 na França, intitulada “Sociedade do espetáculo”, refletia sobre o fato de que o fetiche da mercadoria, o espetáculo social e político, tornaram-se a visão e a língua cotidiana dos indivíduos. Neste mundo espetacularizado os indivíduos consumidores já não dispõem de tempo para experiências contemplativas vitais, humanas, demasiadamente humanas (Nietzsche). Apenas replicam experimentos instantâneos, efêmeros que podem ser consumidos satisfatoriamente individualizadamente e isoladamente, na medida em que não se reconhece no outro aquilo que constitui a nós mesmos enquanto indivíduos.  

Nesta direção, refletir sobre Gaza também se apresenta com um duplo significado. Reflete-se a respeito de Gaza, num sentido em que “sobre” significa “a respeito de”. Mas reflete-se sobre Gaza noutro sentido: reflete-se estando sobre, acima, da pilha de escombros e da imagem da destruição deixada pela guerra. Reflete-se sobre e posteriormente, já invocando a barbárie no passado que, enquanto executada, coloca em questão as expectativas de civilidade e avanço no trato com a vida humana que outrora se pensou acompanharem o avanço tecnológico.  Gaza, nesse sentido, é também o exemplo de que a tecnologia é um meio, e sua utilização depende de interesses políticos e – nas sociedades pautadas no imperativo do lucro – consequentemente econômicos. Daí porque enviar tropas estrangeiras ao combate; televisionar um conflito, relatando-o sob o ponto de vista da estatística, e não do horror da guerra; interromper as transmissões e cessar o assunto após o cessar-fogo. Daí porque tratar os vitimados ainda vivos como sobreviventes, e não como vítimas de um extermínio deliberado sob o disfarce da reação ao terrorismo.

É sob tais condições que podem surgir discursos que apontam: se já não há mais um mundo a ser compartilhado, então que se aproveite a balneabilidade do mar mediterrâneo que banha a faixa de Gaza. Basta remover os palestinos que teimosamente sobreviveram, retirar os corpos junto com os entulhos e construir uma rede de resorts para que indivíduos afortunados possam usufruir daquela pequena parte do mundo. Diante destes descalabros, do horror desta proposta, entre outras brutalidades expressas no ato de proferir sobre Gaza ou se calar sobre ela, é urgente e inadiável refletir sobre o genocídio de Gaza – em sua expressão do extermínio como modus operandi – como forma do governo do mundo em curso e que tende a se aprofundar diante da emergência climática, da escassez de recursos naturais; diante da fome, da pobreza e miséria que se intensificam continuamente.  

Gaza não foi o único, porém é o mais recente experimento pavoroso produzido pelas máquinas estatais e seus ordenamentos jurídicos, políticos e militares capturadas por interesses econômicos que capturam a vida humana transformando-as em vidas nuas, em vidas matáveis, em vidas consumidas a partir dos interesses estratégicos, geopolíticos do poder soberano global. Nesta direção, não há governo no mundo que, participando dos teatros que envolvem as negociações de paz em guerras e submetidos aos imperativos do interesse econômico, não tenha as mãos sujas de sangue, que não reproduza a lógica dos campos de concentração. A urgente e inadiável tarefa de refletir sobre o genocídio de Gaza se apresenta como reconhecimento de que é preciso devolver à vida a sua condição comum, comunitária e, por consequência, reivindicar outra política cujo imperativo não seja a dimensão econômica como fim em si mesma ou em função do lucro, tampouco a dimensão da mera manutenção do poder enquanto dominação e subjugação de outros povos. Neste desgastado, violentado e devastado planeta, a última fronteira da ética é a vida. Se conseguirmos compreender que a preservação e promoção da vida é nossa última oportunidade de compartilhar o mundo e exercer por excelência a condição de animais políticos que somos, quem sabe ainda possa haver possibilidades para a vida que vem.

Ao finalizar estas linhas, insistimos na urgência e na inadiável tarefa de falar, debater e refletir sobre a barbárie que se impôs sobre os palestinos da Faixa de Gaza. Tal condição se apresenta como demanda ética para que não se esqueça e, não se deixe esse acontecimento se perder nos relatos jornalísticos, informacionais de consumo massificado e efêmero destituídos do comprometimento com os esforços cotidianos  de um mundo compartilhado.


Houaiss, Antônio; Villar, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.